terça-feira, 29 de julho de 2008

Metáfora

Por Simone Couto


Verdade maior: estou longe de atingir exatidão ou até mesmo harmonia na relação do meu corpo com o espaço, do meu eu com a vida. Ontem abri uma porta para pegar minhas cartas, ela se fechou antes que eu movesse adiante. Mais tarde, abri outra, esta também se cerrou antecipadamente. "Darling, você não consegue nunca abrir ou fechar uma porta sem se machucar", conclui meu marido. Sim, não consigo, nunca consegui. Cada porta que abro, deixo para trás finas fatias arrancadas de mim. E assim, perambulo por aí, exibindo marcas na pele que só eu sei onde estão. Abrir portas sempre foi uma dor.


(julho de 2008)

sábado, 10 de maio de 2008

A Physis - cá entre nós
por Aline Yasmin
“E aí queridona? Chove em sampa torrencialmente. Delícia de chuva. Não inundasse a casa de milhares e eu diria que amo quando isso ocorre. Mas não vou mentir pra você! Gosto muito. De madrugada a chuva com raios e trovões fez o prédio inteiro olhar pela janela. A minha cabeça com olhos sonados era só mais uma em meio a tantas. Será que o mundo acabaria? Se tivesse acabado naquele momento, eu morreria feliz e leve, viraria chuva. Vez em quando, penso que a morte não é um fim, é um começo, vamos virar vento, fazer furacões, virar água, fazer tempestade, virar mar, virar terra, virar ar...” vini

...

“...Querido, não devo esconder que a chuva também me invade. Às vezes me culpo pelo meu prazer e desprazer de tantos. Mas, é sempre assim - não? Sim, eu sei como uma filha de Iansã, rainha dos ventos e das tempestades, que somos fluidos, somos o que não se pode conter. Ventamos, nevamos, explodimos em calor e energia. O céu, o cosmos, o mar que às vezes se zanga e escurece e outras sorri, azul - tão azul, que penso estar na lua...”yasmin

sábado, 3 de maio de 2008

Hace Tiempo

de Bruno Vaks
(Não sei ao certo se é uma cronica, um conto ou um desabafo)

Tenho a dizer que fazia tempo que não escutava uma simples noticia dela. Só me lembro de nós dois na lavanderia, sentados em cima de algumas máquinas de lavar vazias enquanto esperávamos nossas roupas serem lavadas. Estávamos num lugar estranho, para ambos. E neste lugar estranho é que contávamos alguns de nossos sentimentos mais sinceros.

Naquela noite de Janeiro no Hemisferio Norte, fazia bastante frio, fumávamos cigarros contando de nossas experiencias de vida no começo dos vinte. Achávamos que tudo estava indo a favor da corrente, mas muitas coisas nos angustiávamos e era necessário falar. Para quem, não sabiamos? Só tomamos conta das revelações e sentimentos desprendidos quando voltei do telefone publico com a noticia que tinha conseguido ligar para aquela menina que tanto me atormentava desde o momento que nos cruzamos sem querer numa esquina da cidade. Para ir atrás dela, passei por diversos obstaculos, e com o numero na mão ja estava há dois dias, sem a coragem necessaria para um simples alô. E se ela respondesse com um OK, ou com um não obrigada? Isso, passados dez anos, ainda não tive a certeza. Do seu rosto tambem não tenho a certeza, ele se evaporou juntamente com outras centenas de coisas que acontecem diariamente em nossas vidas.

E essa menina qe estava fumando cigarros comigo numa lavanderia nunca mais saiu da minha cabeça. Se nutri uma paixão platônica por ela, nunca saberei porque com ela nunca mais encontrei. Ainda divago por ai, querendo saber o que ocorreu com ela para afastar-se de todos. Ainda me pergunto o que leva uma pessoa a escapar, a fugir, a começar uma nova vida, com uma nova identidade mesmo sendo ela mesma. Pois sua cara não mudará, seus pensamentos ainda serao aqueles que conversávamos. Com certeza mais maduros como os meus.

Eu agradeço a ela pela força que me passou naquele momento, em que uma simples frase ou quem sabe, um conjunto de frases, me ajudou a romper uma barreira absurda no fazer e não fazer. Essa historia me marcou profundamente. Me lembro de ficar olhando as pessoas, na maioria, imigrantes no novo pais, passando por mim, cada um com sua diversidade, mal sabendo que naquele momento rolava um cumplicidade entre duas pessoas que se gostavam como gente.

Ainda hoje me pego perguntando para as pessoas que um dia foram proximas a ela, como eu fui, seu paradeiro. Muitas não sabem, o que faz minha angustia aumentar. Muitas tentam o contato e são rechaçadas. Me parece que tudo aquilo que ela viveu está guardado embaixo do tapete, juntando os cacos de alguma emoção equivocada ou sentimento desiludido. Ainda acredito que um dia não poderá mais ter lugar para guardar tanta coisa lá e isso transbordará. Nesse instante eu imagino que ela irá procurar alguem. Não a mim que estou longe, mas alguem mais proximo que olhará em seus olhos com ternura e a desculpará pela reclusão imposta pela vida.

A beleza de seus trejeitos será novamente observada por nós e o encontro será bueníssimo ( como dizem alguns). A vontade de saber o que passou em sua cabeça ao longo desses longos anos será desmistificada e daremos risadas juntamente com os outros sentados em alguma paisagem magnifica que o tempo nos trará.

Ontem escutei uma noticia dela. Não vejo sua cara desde então. Não sei o que o tempo fez com ela, porem começo a descobrir o que ele fez comigo. Ela casou e esperava um filho. O presente foi adiado, meu coração apertou e de novo me imaginei sentado naquele mesmo lugar com ela como a dez anos .Porem ao invés de acender um cigarro e comemorar um feito em conjunto, a abraçaria. Forte, para pensar toda a deliciosa alegria de saber que ela de alguma forma, ainda faz parte da minha vida. E que estarei com ela onde estiver.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Bocas e Sinais

Por Aline Yasmin

Sinal vermelho. A massa atravessa observada pelos olhares atentos a espera. Um homem não. Fica, silencioso escorado no poste do semáforo. Coloca suas mãos coladas aos ouvidos, primeiro o esquerdo, depois o direito. Segue. A mulher esbarra com sua bolsa metálica em outra que tropeça - enquanto tenta manter a forçosa elegância. Dois homens - deselegantes fixam-se nos andares femininos, mais propriamente nas partes baixas: coxas, pernas e nádegas – acompanham olhares vívidos e cúmplices – sorriem - primeiro olham, indicam com a cabeça repetidamente até o outro concordar – sorriem continuamente, e falam alto – ê bundão! Gargalhada na seqüência. Só outro homem do lado esquerdo da calçada acompanha e entende. Uma mulher abaixa a cabeça e parece se envergonhar, tímida. A outra parece gostar e caminha mais rebolativa. Do outro lado da rua, rente à praça duas senhoras reúnem-se afobadas a um grupo que evoca a ira de Deus – e a pena dos seus Deuses furiosos contra aqueles que se rebelam – inclusive os dois rapazes que guardam suas presas indiferentes ao grupo. Um senhor de óculos, aro preto, vidros garrafais aparenta 45. Acena para a multidão enfileirada sob a faixa pedestre e diz: - venham para a salvação....uma senhora vira curiosa e pára, de longe. É provável que pelo olhar teso e triste pensa nos seus pecados, ...tanto tempo – agora talvez já redimidos, mas não demora muito e segue ajeitando o cabelo que cai sobre o rosto. Uma jovem, com ares de intelectual passa com uma bolsa preta couro legítimo arqueada em saltos finíssimos – advogada em dia de audiência, diria o senso comum. Com pressa, ignora a praça. Não tem tempo para a metafísica em dias pragmáticos. Surge um rapaz com boné de lado, calça jeans e bolsa de tecido cru, atravessada. Esse observa. Ri um pouco e propõe uma fala no microfone no palanque improvisado. - Quer dar seu testemunho? Pergunta a moça. Ele diz que quer só umas palavras. Certamente não deve ser seu testemunho e fica na fila a espera do espetáculo. A platéia se agita. Um cachorro deita ao lado da árvore - mais alta e fresca. O dia ferve – quente – primavera de verão, todos dizem entre os preguiçosos passos largos: dia quente, dia quente. Credo! Quem se diverte é o vendedor de picolé, e o também da água de côco. Os botecos mais próximos já servem uma gelada. Um senhor de mais ou menos 60 e outro de quase isso trocam cartas e fumam desde cedo - é a aposentadoria, dizem e riem, mas sem felicidade no rosto, um riso cínico, descrente, daqueles que – enquanto sorriem - uma sobrancelha sobe e a boca repuxa pelo músculo no canto até ficar curvada, e ao rirem, os olhos tornam-se para baixo - a gargalhada sobe da garganta, com o esforço de quase um pigarro. Um carro atravessa direto pela faixa cidadã. Revolta. Rapidamente umas cinco pessoas gritam para o homem que pára logo na frente pra se desculpar. Tô atrasado! – grita, tentando se justificar e seguir apressado. No mesmo instante tudo se desfaz – nada. Qualquer coisa é motivo e ao mesmo tempo se perde no movimento convulsivo de agrupamentos involuntários. Um casal caminha alheio com uma criança no colo, contorcendo-se em volta da mesa disposta na calçada para os senhores, uma barata atravessa o caminho e o homem a mata com a ponta do sapato, sem dor. A mulher suspira aliviada, a criançada que saia da escola faz festa com uma caixa de sapato, uma moça com pálpebras de pintura azul e boca vermelha manchada surge numa sacada – Vê a rua, a praça, a calçada, a gente toda que passa – e triste - sorri, fecha a cortina e sai.

domingo, 23 de março de 2008

Para rever e sonhar
Por Aline Yasmin


A memória traz os vivos e os mortos - é uma grande centrífuga que nos forja e pouco resta a fazer – contra e com isso. Os mortos vivos são nossos fantasmas. Creio que há um certo tempo de esquecer e de lembrar. Esquecer para não perder a ternura e lembrar pelo mesmo motivo.
Há exatos 3 meses quando lutava para esquecer encontrei um amigo que não via desde meus 9 anos de idade. Leandro, irmão de Frederico e de Carolina. Nos perdemos no tempo até que novamente nos tocamos. Ficamos ali parados relembrando o olhar infantil no horizonte, corpos escorados pela pedra, oito pés diminutos pendurados numa pequena praia que frequentávamos. Quatro crianças que sonhavam juntas. Frederico com seus olhos verdes folha e Leandro com uma indefectível pinta escura sobre o a maçã rósea do rosto, ambos cabelos pretos que escorriam sobre a pele alva - e nós, as gêmeas. Nos reencontramos 30 anos depois. O tempo congelou naquele espaço. Lembrávamos desse dia. Frederico de um pouco mais. Como um hiato, nossa vida – esse vão que nos distanciou, desapareceu. Fomos sentimento puro. Memória maciça de crianças emocionadas que se abraçaram como se não houvesse nada, como se a dor e as conquistas do passado nada representassem, a ternura nos comoveu, mais do que a nossa vida. Que seja esse tempo, seleto, guardado- feliz, nosso bálsamo, nosso presente mais precioso, um saco de coisas boas - do frescor que cessa enquanto caminhamos na estrada dura. Que seja esse o passado, o lembrar criança, a pureza horizonte, o sorriso espontâneo, pés soltos no ar.

Que enterremos nossos fantasmas, nossos medos, nossos sonhos desfeitos – e façamos outros.


terça-feira, 11 de março de 2008

Amputados
por Aline Yasmin

eram pra ser dois. parte um, parte outro. não eram. eram um corpo só. um pedaço de olho que se integrava numa bacia, dedos perdidos na boca - outra, pele colada pé sobre pé. movimentos que se fundiam tais quais liquidificados. únicos. uníssonos. palavras que se completavam - frases inteiras. o corpo se desintegrou. não o corpo, partes deles - agora dois, deslocados, partes descoladas. a mão que não mais se coloca e os pés completamente tortos - seguem rumos distantes. dizem que se perdem eventualmente e podem ser vistos ziguezagueando madrugadas afora - tentando achar nos escombros o resto do próprio dorso.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Santa Teresa Por Ele e Ela

Por Simone Couto-Versão Revisada)

Ele: Homem não chora. Quem chora é ela, Santa Teresa. Só ela. Eu vi. Eu, perdido entre foliões. O bloco das Carmelitas passando. A Ladeira derramou um rio de lágrimas minutos antes dela chegar. Tanta chuva, tanta dor.

Eu me arrumei todo. Olha que não sou de vaidade. Pensei em colocar a minha melhor roupa e acabei mudando de idéia. Queria encontrá-la com a cara limpa. Não usei brilhantina no cabelo nem minha camisa branca de linho. Aparei de leve a barba. Me enchi de esperança.

O que fiz foi esvaziar a mente. Desmarquei a birita e o jogo de cartas com a turma do Bar do Zé, despachei a empregada e dei-lhe uma gorjeta generosa. Desci e fui até a esquina. Comprei um maço de cigarros. De volta à casa, dispus o pacote e o coloquei na mesa ao lado da cama. Antes de tomar um banho, telefonei para o taxi e pedi que me pegasse às 19:00 horas. “Não posso me atrasar, informe ao motorista,” eu disse à telefonista da agência de taxi.

“Anita não é flor que se cheire”, pensei ao passar pelo o Aterro do Flamengo e ao avistar escassas pétalas de um rosa pálido nos galhos das árvores. Seguimos. As ruas estreitas e as curvas do morro surgiam aos poucos. Aquilo tudo era uma visão familiar. O taxi parou. Fui generoso novamente na segunda gorjeta do dia.

Pisei em Santa Teresa e as primeiras gotas de chuva, quase invisíveis, molharam a linha do bonde, os paralelepípedos disformes, as buganvílias agarradas no muro. Parece que foi ontem quando fugimos da multidão e das serpentinas, para trocarmos beijos extasiados e juras de amor.

19:20, ainda tenho dez minutos. Que fazer com estes dez minutos? Acendi um cigarro. Deixei o tempo passar.

Minha alegria desfaleceu-se aos poucos. O porvir foi assim, eu conto: dose de cachaça descendo quente pela garganta, o pandeiro tocando desafinado, "você manhã de tudo meu, você que cedo entardeceu, Você de quem a vida eu sou, E sem mais eu serei... Você um beijo bom de sal, você de cada tarde vã, Virá sorrindo, de manhã..."

No “Boteco do Mineiro” o músico passou o chapéu. Desta vez fui miserável. Paguei só a conta e economizei na gorjeta. Caminhei rua abaixo por entre os trilhos e confetes. Matutei com os meus botões, “ô mulher ingrata. Vá pro diabo que te carregue.”



Ela: Eu chorei . Derramei um rio de lágrimas. Ele não viu. Também não compreenderia.

Eu me aprontei toda e acabei mudando de idéia. Queria encontrá-lo como realmente sou. Não prendi meus cabelos, não usei batom vermelho. Não vesti aquela fantasia de cigana que ele gostava tanto. Só me preenchi de coragem.

O que fiz foi esvaziar a mente. Desmarquei a manicure das 11:00 horas e liberei a empregada. Fui até a esquina. Comprei um ramalhete de dálias alaranjadas. De volta à casa, dispus uma por uma no vaso e o coloquei na mesa ao lado da cama. Antes de tomar um banho, telefonei para o taxi e pedi que me pegasse às 19:00 horas. “Não posso me atrasar, por favor informe ao motorista,” eu disse à telefonista da agência.

“Osmar é traiçoeiro”, pensei ao passar pelo o Aterro do Flamengo e ao avistar árvores crescendo em solo frágil. Seguimos. As ruas estreitas e as curvas do morro surgiam aos poucos. Aquilo tudo era uma visão familiar. O taxi parou. Paguei o que devia. Desci.

Pisei em Santa Teresa e as primeiras gotas de chuva, quase invisíveis, molharam a linha do bonde, os paralelepípedos disformes, as buganvílias agarradas no muro.

19:10. ainda tenho vinte minutos. Quis acender um cigarro mas não tinha fósforo. Levantei-me e fui embora.

Meu choro ninguém viu. O porvir foi assim, eu conto: Sentei-me no meio-fio, tirei um livro de Freud de dentro da bolsa. Senti-me estúpida lendo Freud em plena terça-feira de carnaval. O abri em uma página qualquer. Li: Quando amam não desejam; e quando desejam, não podem amar. (Cap. IV, II,2).

“Meses sem notícias e agora quer me encontrar? Esquece!”, pensei. Desci a ladeira caminhando com passos tortos por entre os trilhos e confetes. “Todo caso de amor fulminante, mais cedo ou mais tarde passa. Dói mais passa”, suspirei aliviada.

Cinzas, só as da quarta-feira.


sábado, 1 de março de 2008

gira-sol
por Aline Yasmin

hoje me chamaram atenção duas flores no jardim: girassóis. grandes e valentes com suas caras redondas amareladas voltadas para o mar. pareciam felizes. moveram-se durante o dia e procuraram como se poderia esperar, o sol. ele veio confuso, alternadamente brigando com as nuvens. pareciam duas mocinhas singelas contando causos na janela. se eu fosse um pintor - dali, talvez as retratasse ainda melhor do que celebrou
van gogh e as faria certamente duas jovenzinhas cúmplices e desencucadas se fazendo companhia. Não pude deixar de sorrir.


quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

A Chuva

Por Simone Couto
Todos os dias, antes do menino dormir, eles seguiam o mesmo ritual---a mãe escovava-lhe os dentes. Ela sentava-se na borda da banheira e puxava a criança pelos braços magros até esta se encaixar com precisão em suas pernas roxas de varizes. A mãe deitava-lhe a cabeça no colo. Com a boca escancarada, ela escovava dente por dente. Entre uma cuspida e outra do menino, ela aproveitava e olhava-se no espelho resmungando para si mesma sobre os poros entupidos e as rugas precoces.

No quarto, ela vestia a criança em pijamas. “Como pode este já está pequeno se o comprei outro dia mesmo?”, pensou ela. O filho crescia aos seus olhos. Ela nem sempre se dava conta disto e este pensamento era uma alfinetada em sua condição de mãe.

Cada um escolhia um livro na estante ao lado da cama. Após a leitura, o menino deitava-se e aguardava o afago, não sem antes relembrá-la de deixar a porta entreaberta ao sair.

A rotina era esta, com pouquíssimas variações. Todos lhe diziam que aquele menino era um menino fácil. E era mesmo. O menino era tão maleável quanto água. Como ela só tinha aquele ali, não confiava plenamente nos comentários alheios. Inevitavelmente, se sentia exausta das nove horas diárias passadas ouvindo reclamações na companhia de telemarking onde trabalhava, além das obrigações domésticas intermináveis.

A rotina era assim até o dia em que o menino notou pela primeira vez a chuva caindo do outro lado da janela. Estupefato, ele declarou triunfante, “-Está chovendo, mamãe!”

A mãe teve o ímpeto de dizer, “-Sossega, menino, vai dormir e deixa esta estória de chuva para depois!”

Todavia uma bondade inesperada lhe brotou no peito. Esta nascida de quase um ódio máximo, onde a mãe, a ponto de perder-se na própria falta de paciência, se dá conta que ali encontra-se um menino, nada mais do que um mero menino.

“-Levanta então e vai ver a chuva.”, diz ela a ele.

“-A chuva está caindo nos carros! Eu juro. Sabia, mamãe, que a chuva é feita de água?”, ele revela com lágrimas nos olhos minúsculos.

As noites e os dias, depois daquela chuva, jamais seriam os mesmos. A mulher uma vez mais beijou-lhe a testa, desta vez satisfeita por não ter destruído um momento de descoberta do filho.



sábado, 23 de fevereiro de 2008

O Significado das Coisas

Por Simone Couto

algo é o nome do homem

coisa é o nome do homem...
Arnaldo Antunes


O marido chega em casa com uma braçada de flores. Está contente. É quinta feira, véspera de Natal. A sua frente haverá três dias de folga do trabalho exaustivo.

O filho mais velho de três anos, que está aprendendo a planejar seus pensamentos coerentemente, pergunta:

“Mamãe, o que são estas flores?”

“São tulipas, meu filho,” diz a mãe colocando-as já na água antes que elas minguem.

“O que são tulipas?”, continua o menino ainda não satisfeito com a resposta.

“São flores que encantam os olhos.”

“Mas o que é “que encantam os olhos?”

“- As tulipas, meu filho.”

E assim o menino satisfez-se e calou-se.

2004

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Vamos nos falando.....não hoje, Obrigado!

De Bruno Vaks

Ora Bolas, me pergunto a noite. Se já passamos por diversas dificuldades ao longo da semana, com trabalho, com transito, com famílias e com nós mesmo, vamos ainda nos preocupar com o nosso flerte?
Como seria interessante se tudo fosse como Romeu e Julieta ou qualquer outra peça de Shakespeare Aquela adrenalina toda, aquela pulsação extrema de ambas as partes. A metade da laranja que muitos procuram eternamente e nunca se satisfazem, porque o bagaço é simplesmente o bagaço.
Mas nós, Cariocas, acredito que subestimamos o poderio das palavras, em relação ao flerte. Quando ouvir alguém falar para você na despedida de um casual encontro, o famoso “ Vou te ligar! Vamos marcar”? , voice sabe que a chance que isso aconteça é bem pequena. Até o escritor que vos escreve é adepto. A única frase que não deixa nenhum das contrapartes feridas. Considero saudável essa afirmação. Ao mesmo tempo que é otimo, confesso que angustia. Pois muitas vezes a expectativa de esperar o retorno é o começo de uma nova etapa. Acho que não preciso explicar, cada um interprete de sua maneira. Agora a frase “vamos nos falando” tem outro teor. É uma frase dificil de se interpretar, são diversos significados que você pode conjecturar. Primeiro, você pode escutar de uma maneira tenra, de alegria e de disposição da outra pessoa em seguir conversando com você. Já tem aqueles que escutam com um certo desdem do outro. Ora se vamos nos falando, quando exatamente será o ato de falar? Será o “vamos nos falando” uma forma do outro te colocar como coringa debaixo da manga para retirar de forma triunfante quando não tiver mais cartas no baralho?
Pode ser que sim. Imagino na época da Guerra Fria onde EUA e URSS viviam as turras da iminência de uma Guerra nuclear. Quando se encontravam, faziam pompa e tudo para o mundo e sempre terminavam com um apoteótico vamos nos falando para resolver as questoes capitalistas x socialistas. Um outro exemplo de nosso governo, o pedido de verbas urgenciais para Saude, com um plano bem elaborado por politicos honestos é subvalorizado pelos superiores que elogiam o projeto e dizem que vão examinar e no final soltam aquele belo verbete: Vamos nos falando.
Ou mesmo uma menina que espera ansiosa o retorno do menino, que ao invés de ser taxativo nas respostas enrola-se todo com proverbios, ditongos e palavras difíceis e claro, no final, da um beijo e diz: Vamos nos falando. 
Hoje no almoço me questionaram de uma forma não tão direta em relação a isso. Foram dialogos e mais dialogos, que no final pude chegar a essa famigerada frase, que sinceramente, não diz nada. Diz sim, diz uma falta de respeito pelo outro. Uma falta de desleixo com o outro e é claro, enrolação. O que por sinal, pode achar que seja essa crIonica. Um modo para se perceber a carência da escrita e a insegurança de perder o leitor, jogando de forma maquiavélica um sentido diferente para o “Vamos nos falando”. 
Fale, ou senao deixe rolar.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Estudo Sobre Maçãs

Por Simone Couto

O inverno engrandece-se nas notas das quatros estações de Verdi. É austero com o homem. São pequenos golpes perfurando o osso oco e alastrando-se consistentemente. O inverno chega no jardim por trás do muro que separa a minha casa de 120 anos da dos Palmers. Lá há macieiras de folhas permutáveis. Notas de outono. Rubro-laranja-qualquer coisa entre, assim sei que o tempo é mestre diligente. Nem todas as frutas são colhidas. As últimas apodrecerem no pé. Um desperdício que não dói e sim reflete a natureza crua e bela, escolhida para não ser modificada pelas mãos do homem. Lá estão elas, as maçãs, enrrugadas, penduradas. Galho estéril. Eu daqui, do lado de cá do muro, aprisionada no compasso silencioso e transitório dos meus dias, encontro beleza na velhice das maçãs. Como elas, seco uma vez por ano sem dor.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Sobre Desejo e Luto
Por Aline Yasmin

Há aproximadamente 3 meses li espantada o trecho do delicioso livro presenteado por minha querida aflipta, Simone. Li em voz alta pra que pudesse compartilhar o quanto deveria ser interessante sobre o que entendemos a respeito de nossas relações e mais ainda, sobre o desejo:

“...Amar outra pessoa consiste em investir nela a libido originalmente concentrada no ego. O outro se torna ideal do ego. Deste modo, em caso de morte ou de separação do ser amado, o ego, como que esvaziado do seu ser e da sua substância, se identifica com o objeto perdido no luto...Existe aqui sofrimento, mas também pelo fato de uma descarga afetiva, um gozo masoquista. O suicídio do ego é sem dúvida uma metáfora, dado que o ser do objeto substitui o ser do sujeito... "(Camille Dumoulié, O desejo)

Não poderia supor que em tão pouco tempo poderia experimentar o que de fato concordara.

Viver o desejo talvez seja o próprio enigma da esfinge. Aquele a que todos julgamos enfrentar e que muitas vezes custa-nos a própria vida.

Concuspicência? Potência em movimento? Ego? Vontade? Liberdade?

Muito se fala desde que o homem resolveu abandonar sua caverninha pra entender um pouco dos ruídos que extrapolavam seus sentidos. Daí pra se comunicar e pra buscar o logos, foi um pulo. Poucos séculos diante da eternidade. Bastou que se racionalizasse a questão, organizassem a sociedade em métodos e artífices, para que daí surgissem os dogmas, os preceitos e doutrinas incorporadas às culturas específicas. O homem se distribuiu em credos, dividiu-se em cores, etnias, em espaços e linguagens. Cada um estabelece o que é e o que faz – de acordo com suas crenças – que na verdade, poucas são verdadeiramente suas, consensadas arbitrariamente (parece e é – incoerente).

Saímos do estágio animal – inferior, sensível – para o privilegiado “sapiens”: brigamos por poder, matamos por orgulho, superamos os animais e exploramos sua pele. Arrancamos da natureza o que for possível e lucrativo. Das tribos tornamo-nos sociedades, impérios, dos impérios – países, e agora estamos globalizados.

Mas, ainda amamos, ainda desejamos, exercitamos o nosso lado mais instintivo, mais cruel, mais primata. Mesmo que o façamos na busca por nós mesmos – diante de uma teoria lacaniana, o fazemos. Somos cio, somos sexo, somos impulso, somos sentidos.

Convivemos lado a lado com a hipocrisia que nos molda, dialogamos com a moral. Mentimos, porque fica mais fácil. Porque a ética existencial não convive com a moral e com a estética do Bem cristão. Aquele que prefere manter sob a aparência, aquele que não suporta ver-se superado pelo próprio instinto, aquele que quer ser amado, que pactua com os discursos e dorme sob eles.

Mentimos porque a liberdade custa caro. Mentimos porque estamos sós. Vivemos em silêncio. Porque precisamos desfilar em aceno para a multidão que nos assiste – sós. Porque somos julgados, porque cobramos o que não fazemos – por medo. Somos reféns das celas que forjamos. Convivemos com as amarras que nos demos. Porque temos medo de não corresponder. E sorrimos enquanto gostaríamos de chorar.

Fugimos quando precisaríamos enfrentar o medo e a solidão e buscamos o Outro: aquele que somos nós, aquele a quem perdemos, aquele a quem não somos fortes o suficiente para nos bastar. Buscamos afeto, buscamos sonhos – mas temos medo de viver o nosso próprio luto e de enfrentar aquele que não permitimos ainda nascer.

Para responder a questão que nos coloca a brillhante autora: ...Por que o desejo do sujeito conduz, para lá do amor, a uma espécie de deserto onde se acha mais perto do seu ser?”

Eu arriscaria: Por que estamos sós, Camille. O deserto somos nós.



quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Menos Bombas, Mais Amor

Por SimoneCouto

Mais uma viagem ao Brasil e me dou conta o quanto o carioca é inventivo no que diz respeito à linguagem. A gíria está no ar, a gente respira sem opção e logo, bumba! Já está lá ela, sempre na moda, inserida a cada duas frases. “Vai bombar, Simone. O Ano Novo em Porto Seguro vai bombar,” meu querido companheiro literário Bruno Vaks afirma entusiasmado, entre uma garfada do cabrito bem assado no Nova Capela, restaurante cheio charme no coração da Lapa, e uma golada no chope estupidamente gelado.

Nestes dias quentes de verão de 2008 parece mesmo que tudo “vai bombar” no Rio de Janeiro e fora dele. Noite seguinte, resolvo ir balançar o esqueleto lá no Carioca da Gema, outro “point” legal da Lapa. Um amigo, possivelmente entediado, sugere a Quadra de Samba da Mangueira. “Uma e trinta da manhã, Simone, Já deve está bombando por lá, está afim?” diz ele. Claramente não estava pois não movi um dedo em direção à Estação Primeira. Além do mais, a cantora do Carioca começava os primeiros acordes de Roda Viva, do Chico Buarque. Arrastei a saia, gritei o hino e até me dei conta, espremida entre tantos corpos suados que a música fizera meus pêlos se arrepiarem. Ô coisa boa, pensei, ainda sou brasileira da gema.

Entre tantas gírias passageiras que tento aprender às pressas para não ficar demode, desta vez, me fiz de surda e muda, não me popularizei. Desta vez resolvi mesmo ficar cafona.

Da onde vem o termo “bombar”? Fui averiguar e tantas respostas recebi que resolvi tirar minhas próprias conclusões. Será o termo “bombar” um reflexo da violência ignorada pelas autoridades máximas do Brasil e já assimilada pelo brasileiro, que agora a vomita aos montes e nem se dá conta? O verbo já não habita só as favelas com suas ruas nuas, população sem lenço e sem documento. O sol é tão bonito e ainda se reparte em crimes já banalizados pela sua ocorrência cotidiana, lá no alto do morro e fora dele. O Rio é um só, o povo também. Quando a violência chega desapercebidamente à boca e vira moda, é hora de parar, meu chapa, e se perguntar, que país é este em que vivemos?

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Sobre Dor e Aquiles
Por Aline Yasmin

Hoje eu tenho uma dor. Ela começou no pé - direito, mais precisamente no tendão do tornozelo..é não era bem no pé...mas dor é assim, se espalha. E essa dor extrema, não porque era insuportável, mas porque estava na extremidade, me fez reclamar. Reclamar mais do que era necessário. E isso quer dizer dor. Quando percebi, já tomava corpo...peito, cabeça, ombros...era uma dor maior do que daquele tendão. Não dava pra ser injusta e atribuir tanta tristeza a um pobre tendão, embora fosse o de Aquiles.

Aquiles, o mais belo, robusto e valente herói grego. Seu pai, Peleu - rei da Riótida e sua mãe,Tétis, aquela que mergulhou seu corpo nas águas do rio Estige, pendurado pelo calcanhar, em busca da imortalidade. Esse pequeno detalhe que passou desapercebido pela zelosa mamãe, o deixou vulnerável. Páris o feriu mortalmente com seu arco, enquanto Aquiles desfilava elegantemente, certo de sua invencibilidade. Caiu morto numa dor profunda, vítima da fragilidade ignorada.

O que essa lenda mostra é certo: Todos temos nosso calcanhar de Aquiles, embora nem sempre o saibamos qual seja. Um dia alguém vem e nos acerta.

Mas volto a falar do tema dor estendendo-me ao englobante conceito, pedindo desculpas desde já por minha compulsividade. É que escrever é um processo onde cada um deve ou não, pode ou não se identificar. Assim, para os que não se interessam, para os que não pensaram na própria dor, para os que não se importam com a dor alheia, nem com a minha, nem a do Aquiles, sugiro que mudem de tema ou de texto. Pretendo continuar neste até que ela se esclareça de vez. Pode lhe ser útil.

Dor segundo o Wikipédia é resultante de:
1. Variações mecânicas ou térmicas que ativam diretamente as terminações nervosas ou receptores.
2. Fatores químicos libertados na área da terminação nervosa. Estes incluem compostos presentes apenas em células íntegras, e que são libertados para o meio extra-celular aquando de lesões como os íons Potássio, ácidos.
3. Fatores libertados pelas células
inflamatórias como a bradicinina, a serotonina, a histamina e as enzimas proteóliticas.

Mas...como atribuir dor à alma? Alma...para alguns, psiquê, composta dualisticamente pelo sistema corpo-alma, independentes. Para outros, unidade substancial - parte integrante do ser...dependente, integrante, sinérgica, inseparável.

Vamos lá, se entender dualisticamente, pode doer a alma, mas não necessariamente o corpo...
Se entender unidade, dói tudo.

Mas, Cartésio diria...SEPARA! E então, eu corro, maquinalmente...respondo ao meu próprio corpo que sorri, faz ginástica, dança.
A alma, responde: piso em falso, em desequilíbrio, rompo meus ligamentos, e choro por uma dor no pé.
A cabeça, parte outra extrema não ignora e reclama da dor que dói mais e volta sistematicamente a teoria de que não dá: dor é dor e dói - tudo.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Volver

De Bruno Vaks

Estou me especializando em começar a pensar muito quando corro. Não sou medico, muito menos cientista ou geneticista para entender o que passa com a cabeça. Excesso de sangue no cérebro, estomago chacoalhado, pernas em movimento, umas das milhares de “inas” trabalhando. O fato é que me veio um assunto interessante que muitos deixam de exercer, porque trazem saudades, malefícios do sentimento que fica preso com garras sobre nossas entranhas.

Para falar a verdade, não chega a ser um assunto, muito menos uma questão. O que me instiga e me questionou ontem por cerca de trinta minutos pois o verbo “voltar”. Deswcobri uma coisa sensacional a respeito. Eu devo ser uma das milhões de pessoas que não gosta desse verbo. Descobri correndo. Enquanto a ida me satisfaz plenamente, me faz alcançar o objetivo pré-definido, a volta é um martírio, uma chatice. Na ida, você quer desbravar coisas, utilizar todo o seu limite como pessoa, testar suas capacidades e tudo que tem direito. Na volta, acontece o contrario, você não desbrava nada, sabe que o ponto de chegada é igual ao ponto de partida e a única coisa que mudou foi o meio. E confesso, dá uma preguiça danada.

Olhem, que o exemplo dado foi somente da corrida. Ë desestimulante. Dá vontade de parar. Agora repassem para a volta de uma viagem. Se você não faz esforço, nem nada, já vem aquele dorzinha no estomago, chamada saudade. Imaginem fazendo esforço. A ida é uma alegria, excesso de expectativas, de vontades e de expressões diversas. É so reparar numa rodoviária ou aeroporto. O semblante das pessoas é tão diferente. Na ida todos felizes e calmos. Já na volta, aquela pontinha de saudade e a afobação para se sair do avião. Tudo para tentar levar a maximo aquela sensação mágica das férias ou do descanso. Por isso que todos ficam nervosos para saírem o mais rápido do avião e não ter que ficar amargurando aquele ultimo período de férias que está por acabar. A noite da chegada que é de reenconro acaba apaziguando a diferença de humor. Mas fique tranqüilo, que as recordações sempre serão bem vindas e ficarão presentes na memória e se não ficarem, ficam em fotos.

Mas ao mesmo tempo, que voltas são tristes, podem questionar que as voltas boas. Só me lembrei de uma ate agora. À volta de uma doença. A ida você não sente, e quando vê, já está enfurnado, sofrendo horrores, preocupando com sua vida. Quando você melhora, é um alivio e confesso, você vai esquecendo diariamente.

Uma outra, que pode ser tanto boa ou má, é uma volta num relacionamento. Se os dois estiverem feridos e acharem melhor que isso aconteça, parabéns!, fizeram a coisa certa. Mas que não seja uma volta forçada, por não terem encontrando o caminho correto para se reerguer e iniciar desse meio, outra “ida”. Essas voltas podem durar anos, passar por enumeras idas e voltas, ate chegar a famigerada volta, que muitas vezes terminar numa ida eterna. Ate o fim de nossos dias.

Nem sei quem tem opinião formada sobre isso, mas juntamente com os outros irei trabalhar para que a volta não seja uma coisa angustiante, traumática e sem vontade. Que a volta se torne uma ida menos leve, com desafios e aprendizados para que na próxima ida você tire de letra, a dificuldade perpetua da volta.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Eu e o Mar
por Aline Yasmin

Hoje eu acordei cedo. Vizinha ao mar, ainda que tivesse que muito a fazer, o céu azul me convidava e resistir me levaria à culpa. Lembrei-me de um amigo que disse ter estudado teogonia....e depois que precisava me ensinar a meditação dos 04 elementos. Eu pensei... Pensei nos quatro elementos e em mim, o quinto. Lembrei-me da sequência de Luc Besson, do futuro, dos olhos azuis da atriz e de um momento onde ela salta acrobaticamente. Senti inveja do seu salto. Salto livre como se o corpo fosse de seu total domínio - e de fato era.

No meu, somatizo – sem controle.

Ir a praia ao domingo pode não ser uma experiência transcendental. Um homem de meia-idade gritava a sua filha: " burra, idiota, com quase 15 anos e nem sabe passar um protetor"...olhei com olhar de espanto, enquanto interrompia minhas leituras sobre a cultura e filosofia..corpo branco, óculos grandes, 04 quilos a mais, biquíni preto e branco...cabelos loiros (essa parte destoava do resto)... respirei fundo quando o tema virou antropologia. Os seres humanos me impressionam pela distinção entre si.

Bem, sonho em ter uma multidão interessada no que os antigos pensavam e sempre acho que poderia ter uma platéia acompanhando o texto que tanto me interessa - sonhos peripatéticos, diria Aristóteles... Todos ali, reunidos na democrática ágora da praia pública. Delírios. A cena, clássica remontaria a Atenas ou ao hilário grupo britânico Monty Python numa leitura contemporânea. Infelizmente a filosofia empoeirou sob o olhar ignorante ou academicista dos nossos tempos. Filosofemos galera, ao meio-dia.

Ontem, a noite, me senti livre. Liberdade é estar sentada num mirante enquanto todos chegavam animados para sua festa no espaço vizinho (um clube tradicional)..eu ainda exibia orgulhosa meu pareô e um velho caderno onde ansiosa imprimia meus últimos pensamentos antes que escapassem mar adentro.

Interessante a racionalidade, mas o que me tirava do conteúdo era o perfume que passava. Perfume me desconcentra. Gosto de perfume bom. Bom é aquele que não foi feito por acaso..tem cuidado, essência e tudo que tem essência...tem substância, vem antes... Gosto de substare.

Bom e belo são dois conceitos perigosos. Sempre repenso quando uso esse tipo de argumento. Não tenho a menor pretensão em estabelecer parâmetros. Cada um que o faça - mas, por favor, faça...nada me incomoda mais do que não reconhecê-los, ainda que como diz o velho amigo maluco beleza: ..." eu prefiro ser aquela metamorfose ambulante" ..ocupo-me em revê-los se assim o quiser.

Volto-me ao aroma que me percorre...Tem dias que algumas obsessões me incomodam. Seria mesmo necessário fixar-me no mirante na tentativa de distinguir entre um perfume e outro? O olfato me rompe. Alimento-me do olhar. O alquimista do Patrick Suskind e seu Perfume me atordoaram por um bom tempo. Atordoam-me os sentidos. Atordoa-me a beleza, o gosto, o medo, a água que molha - gelada - meus pés.

A razão me apavora. Não tenho como fugir dela.

Ainda que me atravessem todos os aromas do mundo, ainda que devore o mundo com o olhar, ainda que minhas mãos sejam plenas...

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Em terra de cego, o cego sou eu
Por Aline Yasmin

Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? (...) É janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo, aceitando a prisão do corpo que, sem esse poder, seria um tormento (...) Ó admirável necessidade! Quem acreditaria que um espaço tão reduzido seria capaz de absorver as imagens do universo? (...) O espírito do pintor deve fazer-se semelhante a um espelho que adota a cor do que olha e se enche de tantas imagens quantas coisas tiver diante de si. (Leonardo da Vinci )


Há cerca de 10 anos descobri em uma dinâmica que eu era um ser visual e verbal, isto quer dizer que eu me orientava basicamente por essas indicações e ficava mais atenta ao que via e falava. Isso se tornou um grande referencial em minhas perspectivas cognitivas.


Pensei que o melhor seria desenvolver as demais possibilidades, o tenho feito desde então numa tentativa de me tornar mais inteira. Era também preciso ouvir. Com os olhos e a boca lacrados.

Por mim e pelo outro.


Nesse tempo eu dei um salto. Não sou mais tão dependente visual e foi aí que me vi diante do universo dos cegos, eu – vidente, mas deficiente de tantas outras formas.


O portal era alto, mas a estética não importava ali - ainda que me chamasse atenção. Entrei pela primeira vez tateando aquele universo claro e escuro. Sem dúvida, o desafio de penetrar no mundo dos deficientes visuais se mostrou instigante, mas um ser tão visual como eu teria que reaprender a não sê-lo diante mais uma vez da necessidade em superar esse caminho tão fácil e irremediavelmente enganador.

Logo na entrada fui recebida pelo zelador que me abraçou afetuosamente chamando-me por outro nome que não era o meu. Mas, justamente ao me abraçar, desconfortou-se e percebeu seu engano. Disse que eu "parecia" uma velha amiga da escola e ter percebido em minha presença, no meu andar, na minha fala uma pessoa que há tempos não encontrava. No meu desconforto, senti-me ao mesmo tempo confortável. Considerando que ali, somos tudo menos aparência, agradeci pelo aparente desencontro e já me vi, de cara, recebida.

Teorizei claro sobre termos a mesma "energia" o que ele concordou.
Na sequência fui recebida por uma vidente - aquela que vê - e tentei durante a conversa ensaiar um discurso filosófico sobre a importância da visão no processo do conhecimento. Estava ali inclusive por uma missão acadêmica.
Ela me respondeu que para começarmos era importante perceber que antes de sua deficiência, estávamos diante de seres humanos, com suas condições específicas, de realidades distintas, de histórias próprias e por isso a forma como lida com a sua cegueira. Alguns nasceram com ela, outras a perderam - crianças, adultos, idosos. Vidas distintas unidas apenas pelo censo comum. Em 2000, existiam 148 mil pessoas cegas no Brasil.


Percebi na minha primeira fala que fazia exatamente o que a maioria das pessoas faz: enquadrei um ser humano em cego x vidente, preto x branco, rico x pobre, criança x adulto, quase sempre em dualidades – antagônicas ou distintivas. Bem, claro que realidades trazem em si especificidades do conjunto, da comuna, do geral, mas numa perspectiva humana é sempre melhor ir um pouco mais fundo. Esforcemo-nos para pensar nisso.


Lembrei-me que fazemos parte de um grande ensaio hipotético. Consumimos resultados de pesquisas e somos estatísticas. Respondemos ao que pretensamente nos faz bem, visto sob determinado prisma "enquadrante". É impressionante questionar que se não fosse assim, tão cartesianamente pensado como seria então? Faz parte da sociedade adotar um convívio gregário, cujo instinto ilusório nos une ou separa perdendo, as características individuais para o grupo do qual pertence.


Entra na sala uma mocinha que espera para ser atendida. Ela não usa bengala. Observei que ainda tinha uma pouco da visão. A coordenadora sorriu e brincou com ela quando disse:
- Essa ainda não passou no teste.
Eu disse não ter entendido a brincadeira e a menina sorrindo explicou:
"- Eu sei que me tornarei cega em pouco tempo, mas ainda não sou. Tenho uma doença degenerativa que apareceu na infância e não tem como controlar. Em breve farei parte do time, mas ainda não passei no teste como verdadeiramente cega."
Disse como se estivesse serena diante da possibilidade. Seus amigos estariam ali de braços abertos quando a escuridão finalmente se anunciasse e ela então faria parte daquele grupo, numa clara inversão dos valores que comumente aplicaríamos diante de tal situação.


Na sequência, entra um belo jovem de bengala (simbolicamente um objeto de apoio e aceitação da condição) acompanhado de uma jovem graciosa aparentemente da mesma idade. Eles estavam de mãos dadas e sorriam. A coordenadora brincou sobre o namoro e pediu juízo. Eles se uniram a outra jovem com baixa visão e observados ao longe eram apenas três jovens, que sorriam, amavam, compartilhavam histórias.


Eram humanos sobretudo.


É óbvio que não quero dizer que não existe uma distância sobre essa e outra – dentre de uma possível realidade. Mas, penso que a maior distância é a que colocamos diante do que nos parece diferente. Nada entendemos sobre esse universo, se não for por ligação ou interesse pessoal. E diante dele colocamos uma aura, um escudo, um bloqueio.

Buscamos a normalidade “aparente” das pessoas e das coisas como um refúgio, talvez como forma de não estarmos próximos do próprio drama do outro. Talvez como forma de não vivê-lo. Tornamos invisíveis o que não queremos ver. Ou o que fere nossas vistas.


Naquele espaço, deparei-me com o inventivo braille, entendi outras linguagens, como a importância do olfato, do tato, do afeto como sinais a que tão pouco nos reportamos. Percebi que podemos ser mais. Que a velha frase ”O que os olhos não vêem o coração não sente” deveria ser posta em desuso.

Precisamos olhar mais com o coração. Abandonar a imprecisão do valor estético visual e encontrar outros contornos. Perceber o invisível, tatear o outro, ouvir seu pulso – aquele que chama e pede para ser ouvido.
Negar outros sentidos e o que está internalizado como conhecimento próprio - individual é negar o outro. É viver em ilusões como se o mundo pudesse ser plenamente abarcado apenas por cores e luz. Cego num mundo onde as aparências nos faz ignorantes, tal qual afirmou no consagrado Mito da Caverna, o filósofo grego Platão.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Um conceito sobre Tim

De Bruno Vaks


Todo diretor de cinema tem seu método de trabalho e tem suas características que marcam suas historias. Não digo historia pessoal, mas a historia de seus trabalhos. É sabido que David Lynch tem em seus filmes conceitos inquestionáveis de desentendimento. Explico melhor, toda vez que assisto a um novo filme dele, saio mais confuso do que antes de assistir. Acho que seus filmes tem um milhão de possibilidades, uma perfeita analise combinatória de difusas idéias. Já Stanley Kubrick preza pela estranheza e pelo fato que seus filmes incomodam de alguma maneira.

Ainda tem um punhado de “gênios” por ai que não irei citar. Cada um com sua forma de realizar um trabalho. Para alguns críticos incomoda o fato de eles não quererem se reinventar, criar coisas novas, ousar. Mas se o time está bom porque mudar? Outros muitos se indagam. Chego nessa questão cruel que ambos se perguntam. Apesar dessas circunstancias, pude chegar num patamar interessante sobre o trabalho de Tim Burton. Conhecida figura emblemática do mundo hollywoodiano, confesso que a cada filme que vejo dirigido por ele, gosto mais de sua pessoa.

Alguém vai logo, dizer, que o filme do Batman dirigido por ele é horroroso. Concordo! Então falaremos dos outros. Desde que liguei o nome à obra (isso foi em Edward Mãos de Tesoura), me pego enfeitiçado pelos filmes. Ao mesmo tempo, me passam uma problemática sombria sobre a vida, com ferramentas tipicamente iluminadas. Explico melhor ainda, a musica que é uma marca registrada de seus projetos, são sempre tristes, soturnas, com uma melancolia latente. Seus personagens são sempre atormentados, tímidos, pálidos, sempre secundários na sociedade. Suas heroínas não são as mais famosas da escola, as mais lindas da cidade ou a preferida dos homens. São mulheres normais, cheias de sonhos que vêem na melancolia alheia, um modo sensível de se enxergar a vida. Pelos os olhos dos outros. Sempre o ser amado.

Por esses dias, vi a Noiva Cadáver. Filme desenho que ainda não tinha assistido e achei impressionante. A melancolia se misturou com uma alegria que vi em poucos desenhos. Um desenho feito para crianças transforma o relacionamento e o conto de fadas numa questão adulta. Sempre com vilões impagáveis, situações desconfortantes, personagens bem esquisitos e o Johnny Depp, presente em 11 de 10 filmes do diretor.

Não vou contar o final do filme, mas a intersecção de uma bela musica melancólica com cenas felizes fazem qualquer um ir dormir feliz, sabendo que a beleza humana, na verdade, não é sustentada sem um olhar tímido sobre a vida.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Exame Benigno em rede nacional

De Bruno Vaks

Aperto o botão para começar, checo o tênis, ajeito a meia e começo a trotar aumentando a velocidade para chegar num nível que agüente o ritmo. Com o fone plugado no aparelho de ultima geração, passo os canais até encontrar algo digno para minha corrida vespertina. Como estou a fim de correr. Paro num canal da TV a cabo onde passava um programa de entrevista americano muito famoso. O programa da Oprah.

Para aqueles que não conhecem (muito poucos acredito eu), esse programa de auditório fala de tudo. Tem sempre uma platéia linda de anônimas americanas beirando os 35 anos, discutindo os mais diferentes temas. O de hoje, para minha alegria (ou quem sabe tristeza), tratava da historia de um homem que iria fazer uma colonoscopia. Para aqueles que não sabem, esse exame é preventivo para a descoberta de câncer no colon. Muitas pessoas morrem deste câncer, muitas vezes letal. Não tenho estatísticas aqui comigo, que reflitam essa minha afirmação, mas me parece um caso sério e que deveria ser exposto sim a grande massa. Sendo a Oprah, uma enorme comunicadora de massa, é só juntar os pontos.

O fato em si que causou estranhamento foi todo o processo a ser desenrolado no programa. Algo impensável ate em um país de primeiro mundo. Primeiro a historia triste, do medo de se fazer esse exame. Caso não saibam, a colonoscopia consiste em um tubo mecânico/robótico que filma todo o colon e intestinos a procura de pólipos malignos que possam prejudicar o ser humano. Ele é introduzido pelo ânus da pessoa e de fora, olhando para uma telinha, o medico realiza o exame, tira pedaço para biopsia e por ai vai. Calma gente, isso tudo passou no programa de TV. Eu ainda não fiz ate o momento.

Pois bem, continuando no programa, mostra esse homem cujo irmão faleceu de câncer, tomando a decisão de fazer também o exame. Ate ai tudo bem. Aí que entra a idealização absurda desses programas de massa. Vemos o homem, arrumando a mala, se despedindo da família, com ar tenso, musica tensa ao fundo. De repente, corta para ele dentro de um avião indo para Nova York fazer o exame. Mostram a marca da companhia aérea e o avião aterrissando. Corta novamente e estamos num quarto belíssimo de hotel aonde o paciente irar repousar para o exame. Corta de novo (quanto corte!) e ele aparece com um vidro de laxante de 500 ml. Ele explica que tem que beber 100 ml a cada dez minutos. Nesse ínterim, quem liga? O medico da Oprah, perguntando como ele está, que ele é muito corajoso, que o pior já passou, Bla bla Bla! Surpreendente o medico ligando para o paciente e acalmando. Igualzinho aqui. A cena chega ao fim, com o homem reclamando que o intestino está preparando algo e para terminar, uma brincadeirinha ao lado da privada, onde ele diz:

-Essa será minha melhor amiga da noite.

Ate agora que saga. Mas ainda não chegou ao fim. No próximo bloco, vemos ele sendo sedado e a operação em si. Não passaram a hora que inserem o objeto no anus dele. O exame é um sucesso, a retirada de pólipos é realizada e o anuncio que o resultado fora negativo é recebido por uma salva de palmas pelos presentes no auditório com o sorriso mais branco e lindo do mundo.

E eu lá correndo, suando, nem sequer olhei há quantos tinha caminhado. Aquela cena me deixou extremamente intrigado com a medida utilizada pelo programa. Ao mesmo tempo de uma forma surreal, eles mostram um exame que tem que ser difundido pelas pessoas de menor renda e menor grau de instrução, como uma oportunidade da pessoa ir a outro estado conhecer a cidade, realizar o exame e aparecer na TV. Seus quinze minutos de fama e não precisa passar três meses confinado numa casa. Fico pensando se as pessoas vão achar que será assim o tratamento. Deveria ter uma legenda explicando que aquilo era meramente ilustrativo sendo utilizado somente pelas classes abastadas da sociedade.

Retomemos o caso para o Brasil, enquanto limpo suor da testa. Tirando meia dúzia de pessoas, o resto da população vai ter que enfrentar longas filas, esperar por um bom tempo, se desvencilhar da maquina burocrática. Depois disso tudo, fazer o exame quando o hospital realizar, senão por conta própria tem de procurar o hospital mais próximo, às vezes a centenas de quilômetros de sua casa para fazer. Ate á surgiu uma nova doença que não foi tratada, um acidente que poderia ser evitado, ou mesmo a falta de oportunidade, pois precisaram trabalhar do que cuidar de si.

Voltando o caso para a América, sai da esteira confiante que a grande parcela dos telespectadores saiu daquela segunda feira à noite, quando passa o programa, mas consciente do poder destrutivo que o câncer pode lhe fazer, e desmistificando o fato do exame ser uma negação a virilidade masculina. Sendo a coragem daquele homem que mostrou seu intestino para milhões de pessoas uma dádiva, mas ganhando um jabazinho para efetuar aquilo tudo. Daqui a pouco ele aparece na Ilha de Caras.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

para nós, os amaldiçoados

Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.

O Outro, Composição: Adriana Calcanhotto / Mário de Sá-Carneiro


Acordei pensando em Sintra, Portugal, nas ruínas de seu castelo anciente. Meus pés ainda se lembram das subidas e descidas de degraus infinitos, passando pela sua única entrada, uma porta pequenina de pedra. A caminhada era através de uma estrada estreita de terra batida até à escadaria à beira da parede. Cada degrau, só mais uma pedra, mas parte essencial do todo, como somos todos, indivíduos invisíveis, elos da sociedade. Do alto do Castelo dos Mouros há de se perder a respiração em êxtase pelo verde e o infinito—liberdade—um mundo belo à frente das retinas. Como toda ruína no alto de um morro, os dias gloriosos ficaram perdidos no tempo. Já não há paredes, os mosaicos decorativos nela, o teto.. Há só o esboço do sido. Um esboço de pé ainda para não esquecer e ser esquecido.

Recentemente assisti uma peça escocesa baseada em entrevistas verídicas sobre a atuação do batalhão do exército "Black Watch" na guerra do Iraque. Toda civilização tem suas guerras e eventualmente depara-se com a própria decadência. Como sempre em história, século após século, meninos viram homens antes do tempo, com armas na mão. No palco do teatro Saint Ann's Warehouse, em Brooklyn, NY, oito deles aprendem a lição, entre ondas de medo e coragem, morte e sonhos. O general da tropa confessa, "somos todos amaldiçoados, na escolha, na falta de opção carregada no sangue, herdada dos pais que herdaram dos avós, por isto viramos soldados." Estes meninos—homens não sabem a razão por estarem em meio de uma guerra (assim como os meninos-soldados filhos das favelas brasileiras). É tudo tradição. Os meninos-soldados não defendem o próprio território, invadem o próximo. Sentam sob o calor escaldante do Oriente Médio à espera de um outro menino, o menino-bomba.

Como artista, eu sou amaldiçoada também. Mais cedo ou mais tarde, seremos todos sacrificados. A minha arte não me defende e sim invade o espaço do outro e perturba o conforto alheio. O artista cria para se salvar, se curar e devolver ao ambiente um cidadão melhor.

Tenho tanta coisa linda pra falar, pra mostrar, há beleza em mim certamente. Entretanto, se tenho que falar do belo, não sei escrever. Escrevo mal. Esqueço. Quem escreve sabe. O artista quer tudo aquilo que não está terminado. Só o esboço lhe interessa. Um mundo belo é um mundo acabado. Há os poemas perfeitos que nascem aleatoriamente. São magníficos mas caem em esquecimento. Estes nascem no momento da ação que o inspira. Todo poeta já vivenciou estar distraído e ver o poema surgir do nada, ditado pela própria voz muda de dentro de si. Por estar distraído, o poeta ouve os versos, mas minutos depois não pode lembrá-los. Este poema é o poema belo. Todos os outros, são frutos do trabalho, do artista artesão, que trabalha na forma, no som, na linguagem, frutos de um ambiente imperfeito. O artista cria através do exercício da doação, da exposição. Não estão distraídos e assim podem se colocar na linha de fogo. Podem ser sacrificados. Revelar um mundo exterior imperfeito para transformá-lo pode ser crime. Revelar o mundo interior do homem, também.

Sim, nós, os artistas, como eles, os meninos soldados, somos amaldiçoados. Nós, os invisíveis, enxergamos este mundo em ruínas e queremos paz, queremos o verde infinito visto do alto do morro. Existirá enfim esta possibilidade, para nós, os amaldiçoados?

Por Simone Couto

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Um Belo Retrato

Por Simone Couto

É fácil retratar o corpo, transformá-lo em um belo retrato. Difícil é desenhar a alma do outro. Há de se ter permissão e raramente quando ela é concedida. Na maior parte do tempo, ao obtê-la, o artista não falha em se envolver e decifrar os mapas invisíveis da alma. Exige tempo e o desejo de abraçar o invisível, o não palpável, aquilo que não é obvio. Para desenhar a alma alheia, há se despir também, deixar para trás a couraça feita de velhos hábitos, de amores routineiros, causas passadas. O desconhecido assusta enquanto que o familiar conforta. Agora, quando o artista desisti e comete um ato falho, qual alma estará o artista traindo? A do outro ou a própria?

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

42nd Street

Por Simone Couto

Estava a caminho do Fashion District em Mahattan à procura de fitas coloridas. No trem me perdi lendo sobre as chamas lambendo o Estado da Califórnia. O trem diminuiu a velocidade. Na próxima estação, a 42nd Street, eu desceria. Guardei o jornal lido pela metade. Trem quase inerte. Me levantei e caminhei rumo à porta. Um rapaz jovem sentado à minha frente me olhou. Olhar de surpresa e despontamento. Tinha um caderno e lápis na mão. Furtivamente, mirei o papel daquele estranho. Então a imagem rabiscada se traduziu em familiaridade. Vi meu rosto, meus cabelos soltos, meu perfil agudo. Era eu. Era eu ali. Clara. Ele me rabiscou três vezes. De frente, de lado. Aquele homem me desenhou e eu nem notei. Ando dispersa por estes dias, bem sei. Ele me notou quando eu mesma não me notava. Um dia me disseram ser eu uma musa inspiradora. Não era mas escolhi acreditar. Sempre se sofre desmedidamente quando enganado. Há enganos que escolhemos para agradar à alma vaidosa. São enganos feitos de temporaneidade. Como água que mais cedo ou mais tarde sempre evapora. Até esta manhã, de verdade, nunca servi de inspiração para ninguém. Para mim mesma, talvez, jamais para o outro. Comigo sou honesta. Breve. Dura. Ora me inspiro nos confusos labirintos que crio a todo tempo para ter alegria, ora na saudade e tristeza sem lógica, ambas tatuadas em minhas entranhas, ora nas minhas obsessões carnais e outras mais da alma. Mas hoje, hoje eu fui verdadeiramente uma musa. Ninguém me contou. Eu vi.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Dumbo NYC

Por Simone Couto

Dumbo is crepuscular—Bricks, dormant train tracks, graffiti—art crime on the walls. Inside of lofts, studios, we are under construction, so is Dumbo. But not today, not today, not today. I see the sunset—the rain getting closer and closer, bringing me the midnight blue sky. East Side Highway without traffic. Brooklyn Bridge without traffic. Latent. At this moment, no gorgeous model( they never smile) is being photographed. No movie is being filmed. Today, the streets belong to us, the wolves, always ready to devour the unknown. We are nameless. The river belongs to us, the underground lovers (nameless still. Still). The river is quiet, the sage green river... Tedious Wednesday. The trains never stop running—neighborhood's heart. Dumbo is loud, so loud that one becomes quiet in his core. My core is all silence. Right now, 5:19 p.m., dark autumn skies. My gloomy soul rests while Dumbo pulses. Good Night, restless souls.

domingo, 21 de outubro de 2007

Tropa e Elite

Por Aline Yasmin


Dois assuntos têm permeado a massa nos últimos dias e mesmo que distintos ambos perpassam a mesma temática: a violência.

Um gira em torno do filme Tropa de Elite do diretor José Padilha e o outro, de um artigo do apresentador Luciano Huck sobre o assalto sofrido.

Num olhar mais aprofundado podemos destacar que a discussão é o que emerge de uma situação ainda mais complexa que é a desigualdade social e suas representatividades.

Simultaneamente temos a palavra "elite" posta em dois planos antagônicos. De um lado, heróico, de outro culpado. A questão aqui não é julgar e tampouco condenar um ao outro, mas provocar uma reflexão sobre a medida de valores em que a sociedade se interpela.

Somos todos reféns. Talvez esse seja um fato. Ricos ou pobres. Estamos reféns de nossos próprios valores e da distorção a que estamos expostos.

O batalhão do BOPE – polícia de elite – é mocinho, mas utiliza-se de meios ainda mais violentos para reduzir a violência – física e moral, inseridas inclusive na própria estrutura institucional. A população aplaude em sua maioria, as crianças cantam suas musiquinhas ..." pega um, pega geral..." em coro e a estética cinematográfica é "cult", quase digna de indicação ao Oscar.


A elite do mauricinho é alienada e opressora, ícone da desigualdade. O bandido é a vítima. Não estamos propondo cultuar o malfadado objeto Rolex, nem dar voz ao excessivo valor material da massacrante sociedade de consumo da qual também somos reféns – obviamente referenciais do desnível social e muito menos em menos tirar o êxito da "exemplar" corporação.


A reflexão é sobre o que está sendo discutido e o que estamos cultuando enquanto valores referenciais que passam a justificar os meios pelos fins. Talvez seja propor um pensamento onde a tendência não seja balizar-se na dualidade maniqueísta separando realidades entre o bem e o mal, mas um pensamento onde haja matizes, nuances que possibilitem isolar condutas e não simplesmente entrar no jogo cartesiano de enxergar as extremidades num plano meramente linear.


Nem toda classe média financia o tráfico, nem todo rico é alienado, nem todo pobre é ladrão, nem todo ladrão é vítima – ou o contrário. Separar o jogo do trigo não é estabelecer paradigmas libertadores ou dogmáticos.


É necessário estabelecer uma crítica, ao invés de procurarmos bandidos ou mocinhos. É necessário – sim - formarmos massa pensante, consciência crítica para buscarmos juntos, um diálogo: pobres, ricos, aviltados, violentados e violentos – uma nova elite – tropa social desalienada – da matéria e de discursos viciados.

sábado, 20 de outubro de 2007

Brasil, il, il, il

De Bruno Vaks

Está bom. Todos sabem que futebol é coisa para entendido, mas todo mundo dá pitaco. Até os mais desinformados. Escrevo assim para não ganhar nenhuma ofensa vinda dos meus três leitores (Obrigado Sim e Aya, o outro ainda é desconhecido). Mas o fato é que quero dissertar – esse é o verbo – sobre o jogo do Brasil que ocorreu ontem (dia 17/10) no Maracanã. Após sete anos de televisão, a equipe milionária brasileira veio fazer um espetáculo aqui no Rio.

Tenho que dar parabéns à ordem e a civilidade, menos no Metro, diga-se de passagem, que encontrei ao longo das 3 horas que passei por lá. Tirando a goleada e as jogadas bonitas, posso garantir que foi um jogo para lá de burocrático. Muitos erros, muitas afobações, muitas bolas perdidas, mas esse não é o fato que irá preencher essa crônica hoje. Não as jogadas, os dribles e os gols, mas sim ao que eu chamo de hipocrisia do brasileiro.

Também não vou citar nenhum filosofo francês ou alemão para repetir suas palavras sobre o ambiente, mas vou evocar a extensa cultura carioca de ser, que cultivamos há anos e anos. Achei chôxo (se escreve assim?), sem sal e um pouco desanimado o jogo da “família brasileira” como muitos falaram. Já reparou que ninguém fica gritando Brasil, Brasil o tempo inteiro? Quando uma bola batia na trave cantava-se Brasil duas vezes, e todos calados novamente. Enquanto isso um lado da arquibancada começa a cantar gritos de guerra do Flamengo enquanto o outro lado grita hinos do Vasco. Ora se é um jogo nacional, porque cargas d’agua a mesma torcida fica se provocando? Hipocrisia um.

Outro fator que não me comove é esse sentimento falso de patriotismo exacerbado. Explico, calma. Confesso que até hoje me emociono com o hino brasileiro por suas palavras bonitas e complicadas que muitos que o cantam enrolam-se com palavras imaginárias ou enrolam até chegar no refrão. Eu já fui um desses e até hoje cometo gafes. Mas não consigo cantar de jeito nenhum aquela cantiga criada por algum publicitário como eu, dizendo: Eu sou brasileeeiiiro, com muito orgulho, com muito amor. É intragável. Concordo que muito amor tenho pelo Brasil, agora dizer que sou orgulhoso é omitir tudo que se passa nesse país e com a sucessão de acontecimentos que vamos deixando para trás. Orgulho de ter um país corrupto, ingrato e com desigualdade social? Peraí, essa é uma hipocrisia camuflada que todos cantarolaram sem um mínimo de culpa, por isso essa é a dois.

Mas como todos, acredito eu, me divirto com os comentários que escuto de outros torcedores, vindos do lado, da frente e de trás. Preste atenção, tem tanto comediante que é capaz de você passar o jogo inteiro rindo. Claro, se o seu time estiver ganhando. Mas chega a ser engraçado que mesmo depois de execrar o tal jogador, quando ele faz gol continuam falando mal e às vezes o fazem por puro orgulho. Orgulho de ser brasileiro como dizia a musica? O que não consigo entender é a relação de amor e ódio que as pessoas tem em relação a alguns jogadores. Como aos dez minutos do primeiro tempo você pode odiar o tal jogador pedindo a cabeça dele, da mãe e do papagaio e aos doze minutos quando ele mete um gol você declama poemas e juras de amor ao mesmo cabeça de bagre que você xingou? Isso me cheira a mentirinha do tempo da escola para esconder da professora porque você chegou atrasado do recreio. Não consigo achar outra palavra a não ser hipocrisia o que ocorre. Está ai a numero três.

Vocês devem estar pensando que vou enumerar ate dez, as melhores hipocrisias cariocas num jogo de futebol. Não vou não. Três está de bom tamanho. Isso tudo foi escrito até agora para que eu possa demonstrar a tamanha felicidade em dizer em bom e alto tom que a musica que foi mais comemorada no jogo do Brasil, tirando a comemoração do gol com a jogada fantástica do Robinho, foi a musica para o Galvão Bueno. Acho que nunca num estádio, vi tanta gente pulando de alegria e satisfação num grito de guerra que manda o locutor mais odiado e amado da Globo tomar naquele lugar. Os pulos de felicidade aí sim eram legítimos. A rapidez com que a musica fluiu também foi assustador. Queria eu estar na cabine para ver a cara do sujeito. Isso sim é a irreverência carioca, isso sim mostra a cara do povo e daquilo que ele não quer. Isso sim não é nada hipócrita.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Santa Teresa por ele

Por Simone Couto

Homem não chora. Quem chora é ela, Santa Teresa. Eu vi. Chorou minutos antes de você chegar.

Eu me arrumei todo. Olha que não sou de vaidade. Pensei em colocar a minha melhor roupa e acabei mudando de idéia. Queria te encontrar com a cara limpa. Não coloquei brilhantina no cabelo, não usei meu terno branco. Aparei de leve a barba. Me enchi de esperança.

O que fiz foi esvaziar a mente. Desmarquei a consulta das 11:00 horas com o dentista, despachei a empregada e dei-lhe uma gorjeta generosa. Desci e fui até a esquina. Comprei um maço de cigarros. De volta à casa, dispus o pacote e o coloquei na mesa ao lado da cama. Antes de tomar um banho, telefonei para o taxi e pedi que me pegasse às 19:00 horas. “Não posso me atrasar, informe ao motorista,” eu disse à telefonista da agência de taxi.

“A primavera é uma dama tímida”, pensei ao passar pelo o Aterro do Flamengo e ao avistar escassas flores de um rosa pálido nos galhos das árvores. Seguimos. As ruas estreitas e as curvas do morro surgiam aos poucos. Aquilo tudo era uma visão familiar. O taxi parou. Fui generoso novamente na segunda gorjeta do dia.

Pisei em Santa Teresa e as primeiras gotas de chuva, quase invisíveis, molharam a linha do bonde, os paralelepípedos disformes, as buganvílias agarradas no muro, o mesmo de meses antes, onde nos apoiamos entre uma banda carnavalesca e um beijo perdido na multidão. 19:20, ainda tenho dez minutos. Que fazer com estes dez minutos? Acendi um cigarro.

Teresa chorando você não viu assim como a minha alegria desfalecendo. O porvir foi assim, eu te conto: dose de cachaça descendo quente pela garganta, o pandeiro tocando desafinado, "você manhã de tudo meu, você que cedo entardeceu, Você de quem a vida eu sou, E sem mais eu serei... Você um beijo bom de sal, você de cada tarde vã, Virá sorrindo, de manhã..."

O músico passou o chapéu. Desta vez fui miserável. Paguei a conta. Caminhei rua abaixo por entre os trilhos. Matutei com os meus botões, ô mulher ingrata. Vá pro diabo que te carregue.

Santa Teresa Por ela


Por Simone Couto

Eu chorei você não viu. Também não compreenderia.

Eu me aprontei toda. Pensei em colocar a minha melhor roupa e acabei mudando de idéia. Queria te encontrar como realmente sou. Não prendi meus cabelos, não usei batom vermelho. Me preenchi de coragem.

O que fiz foi esvaziar a mente. Desmarquei a reunião das 11:00 horas com um cliente, liberei a empregada. Fui até a esquina. Comprei um ramalhete de dálias alaranjadas. De volta à casa, dispus uma por uma no vaso e o coloquei na mesa ao lado da cama. As dálias dividiram em harmonia o espaço com a edição antiga de Madame Bovary. Antes de tomar um banho e me preparar, telefonei para o taxi e pedi que me pegasse às 19:00 horas. “Não posso me atrasar, por favor informe ao motorista,” eu disse à telefonista da agência de taxi.

O mar é traiçoeiro, pensei ao passar pelo o Aterro do Flamengo e ao avistar árvores crescendo em solo frágil. Seguimos. As ruas estreitas e as curvas do morro surgiam aos poucos. Aquilo tudo era uma visão familiar. O taxi parou. Paguei o que devia. Desci.

Pisei em Santa Teresa e as primeiras gotas de chuva, quase invisíveis, molharam a linha do bonde, os paralelepípedos disformes, as buganvílias agarradas no muro, o mesmo de meses antes, onde nos apoiamos entre uma banda carnavalesca e um beijo perdido na multidão. 19:20. ainda tenho dez minutos. Que fazer com estes dez minutos? Quis acender um cigarro mas não tinha fósforo.

Meu choro você não ouviu. Derramei umas poucas lágrimas. O porvir foi assim, eu te conto: Sentei-me no meio-fio, tirei um livro de Freud de dentro da bolsa. O abri em uma página qualquer. Li: Quando amam não desejam; e quando desejam, não podem amar. (Cap. IV, II,2).

Meses sem noticias e agora ele quer me ver? Desci a ladeira caminhando com passos tortos por entre os trilhos. Todo caso de amor fulminante, mais cedo ou mais tarde passa, suspirei aliviada. Cinzas, só as da quarta-feira.


domingo, 14 de outubro de 2007

Os Iluminados Efêmeros do Soleil
(dedicado especialmente à atriz Juliana Carneiro da Cunha)

Por Aline Yasmin


Depois do espetáculo eu e Caê – embora exaustos – não conseguíamos dormir e ainda que precisássemos acordar cedo para o primeiro vôo, procuramos um canto onde pudéssemos transbordar todos os pensamentos que nos contornavam. Estávamos embebidos de imagens e referências pessoais. Era preciso falar delas.

O ir e vir mental foi um deslocamento inevitável até aqueles instantes onde tudo nos pareceu sublime. Sublime no sentido dor. O belo e o sublime se divergem nesse sentido – e o último nos parece mais tocante. Talvez pudesse dizer que seja uma superação. É mais.

Os efêmeros estavam em todos os lugares. Não há como ignorar (plagiando a grande diretora Ariane Mnouchkine) também a sua platéia. Notáveis e anônimos que se viveram durante longo tempo, compartilhando sentimentos e olhares, tais quais cúmplices desta história – fomos uma massa entrelaçada e orquestrada magistralmente pelos iluminados atores do Soleil. Também fomos efêmeros. Choramos e rimos juntos – fomos únicos e não somos mais. Fomos conjunto cena – platéia – arquibancadas – aromas - texturas - sabores - água.

O espetáculo é tudo. Impressiona-me não somente as personagens e histórias construídas, mas a concisão de tudo que nos circunda. Impressiona-me o ator que limpa o chão com a mesma dignidade com que entra em cena, o olhar daqueles que movem as estruturas - quase como extensão cenográfica (mas ao mesmo tempo absolutamente incógnitos), a atenção do grande regente a cada gesto, a sincronicidade das cenas, a leveza e a densidade e o virtuoso processo – que mais podemos chamar de generoso – em nos proporcionar o contato mais profundo com o que chamamos humano. Fomos Humanos aos nos depararmos com a fragilidade do que somos, ao tocarmos de perto fragmentos de nossas vidas. Nos identificamos ao certo com tantos e é isso que universaliza nossa particularidade: a solidão, a fome, a espera, o desejo e a memória.

O vôo chegou na hora prevista em Vitória. Ao chegar em casa, dormi. Sonhei com Os Efêmeros. Os frequentei tanto quanto os fizeram em mim. Revisitei palavras – em francês, língua adormecida que sorvi como o delicioso iogurte - dialoguei com alguns e a outros acariciei. Compreendi a imensidão de nossa finitude e que para ela nem precisariam palavras. Bastaria a dignidade de Sandra, a busca de Jeanne, o altruismo de Manon, a superação de Gaëlle, o olhar da Perle e o gesto da Nelly, diante de tantos outros gestos como linguagem e significação – sinais de nossa vã existência – sem os quais nada representaria.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

CARTA ENTRE AMIGOS
por Aline Yasmin

... Ontem engoli água do mar... foi bom. Por mais engasgante que tenha sido, foi bom. Revivi sensações de moleque quando eu me jogava no mar e acabava engolindo muita água, muitos caldos... tenho revivido sensações de adolescência de infância. Acho que sou mais feliz hoje do que sempre fui. Eu quando moleque achava o mundo muito estranho. Hoje, acho-o mais estranho ainda, mas aprendi a amar essa esquisitice. Porém, minhas sensações mais profundas, que partem de cheiros e gostos, seja da chuva na grama, seja a amora da árvore, me remetem a sensações muito puras, porém, já sentidas... Aí eu tenho a impressão carnal de que já vivi todas as novidades sentimentais possíveis. Apesar de me sentir num momento incrível de relação com a pulsão do existir, tenho a impressão de que as coisas sentidas, já foram sentidas... Aí li um conto meu escrito há algum tempo e lá, um personagem expressa uma sensação minha: as nossas sensações de adultos, são reverberações das sensações vividas na infância e na adolescência ou há muita novidade de sensações??? Talvez ter filho (como você teve) traga novas sensações. É isso?

A meu amigo sobre sensações

Sabe, o filósofo grego Platão - de quem ultimamente tenho gostado muito, diria que existem as reminiscências - na verdade, idéias inatas que o homem contemplou em contato com os deuses. São lembranças de uma outra vida que o homem traz a tona em contato com a percepção das coisas. Depois disso tudo seria falso - ou apenas cópias do ideal (idéias perfeitas) e estamos falando do que imaginamos ser a vida real.
Existe também, creio eu, a perspectiva de que estamos em permanente construção. Claro que a significação de um caldo mudou, porque o mar também mudou pra vc. Nós mudamos para o mundo e isso faz com que o mundo mude também e o que parecia esquisitice, se tornou seu domínio. Vc o percebe e é maior do que ele, porque agora pode aceitar ou negar, gostar ou não. Essa parte é muito importante. Isso muda o nosso olhar. Não temos como rejeitar o fato de que somos únicos e que o sentimento é altamente subjetivo - quer dizer, quem determina é o sujeito na sua relação com o tempo e o espaço. Essa sensação pode não ser a mesma sempre. Um caldo, um cheiro, um prazer específico ou uma dor podem assumir dimensões ou intensidades absolutamente diversas no decorrer da nossa vida. Creio que o que determina é o momento vivido. Um filho pode ser recebido de forma distinta do outro. Comprar um objeto desejado pode ser para alguém o mesmo sentido de ter um filho - não em valor (claro!), mas em ter alcançado algo que gostaria muito. Pode ser que um filho seja ruim, uma notícia negativa para alguns a ponto de desejar matá-lo (como temos visto na mídia). Enfim, não dá para prever o que seja realmente novo enquanto sensação. Pode-se inclusive nos revelar algo a que convivíamos sem perceber, até estarmos propensos a esse despertar. E aí, tudo novo de novo....como diz o grande poeta Paulinho Moska.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Sobre os Filhos e as Pedras

Por Simone Silveira

Criar filho é semelhante ao ato de jogar a pedra na água no intuito de fazê-la derrapar, ou na melhor da hipótese, saltar graciosamente na superfície cristalina afim de que conquiste o infinito.

A pedra é escolhida ao acaso, pois elas estão lá soltas no mundo—rua, beira do rio, floresta. Mundo este que não existe até que nos damos conta dele. Agora, o mundo uma vez formado, nos presenteia com seus elementos minerais, diria mesmo ancestrais. É preciso que admiremos a grandeza da sua extensa existência. Assim, é possível tratá-lo com maior dignidade, já que, nos últimos tempos, temos coniventemente ignorado sua fragilidade e contribuído para a sua devastação.

Entre tantas pedras, há de se escolher uma com a forma plana e de preferência, arredondada. Há sempre a dúvida cruel se a eleita entre tantas é perfeita o suficiente para o jogo. Neste caso, e em quase todos na vida, uma escolha, é realmente a falta de escolha, pois já nos acostumamos a carregar no peito e na cabeça, idéias pré-definidas. Assim se passa quando se tem um filho. Bem no fundo, na hora do nascimento, a dor latente, a bacia dilatando, não importa ser a criança homem ou mulher. É imprescindível que seja saudável. Somos todos animais. Muitas mulheres como eu, dividem a mesma experiência de contar os dedos dos pés e das mãos do bebê nos primeiros segundos de vida dele. Essencial mesmo é que ele nasça. Ponto. Conheço quem pariu uma criança morta. Esta dor eu jamais desejo ao meu semelhante. Conheço uma mulher que pariu um filho doente. Ela é o meu melhor exemplo de mãe—paciência infinita, dedicação integral sem espera de retorno, amor incondicional.

Uma vez a pedra na mão, as outras deixam de existir, assim também se passa com os filhos. Quando miramos a sua fisionomia pela primeira vez, é como se já o conhecêssemos por toda a eternidade. Não há esforço. Esta familiaridade é instinto. Depois do reconhecimento, é hora de estudar a melhor forma de jogá-la na água para que salte em intervalos regulares. O intuito é que ela vá longe, muito longe. O corpo e as mãos se curvam em um ângulo específico, afim de que ao lançar a pedra, ela perfure o ar rodopiando em círculos magistrais, seguidos de um arco perfeito rumo à água. Sem quase tocar a superfície e vencendo a tendência natural de submergir-se, a pedra finalmente derrapa harmoniosamente sobre ela. Esta arte, aparentemente tão simples é como a arte de se criar um filho. Sua complexidade vem com a primeira febre, a primeira briga na escola, o primeiro palavrão, a primeira dor, o primeiro amor e outros primeiros que nos pegam despreparados e nos põem tão confusos como nossos filhos. Bem no fundo, somos todos marinheiros de primeira viagem, inclusive aqueles, como eu, que se julgam frutos de uma geração esclarecida —tudo pelo diálogo, e que defendem o conceito de ser a criança dotada de direitos e deveres como qualquer outro indivíduo. Na hora do aperto, há de se consultar os livros. To Listen to a Child, do Doutor Brazeton tem sido de suma importância como outros dele. A sogra também é elixir com toda a sua experiência de vida. As vizinhas, e até o porteiro tem o seu lugar nesta difícil arte.

Maternidade é certamente um ato natural, assim como muitos, por exemplo, comer de garfo e faca, porém é necessário a aprendizagem. Amamentar talvez tenha sido uma das mais doloridas, fisicamente e emocionalmente, nos meus primeiros meses como mãe. Tudo estava errado. Meu filho berrava. Era fome lhe corroendo o pequenino estômago. Eu me olhava no espelho, seios feridos, tanto sacrifício, qual era o problema? Eu era insistente no meu desejo, agüentava a dor da ferida aberta e os berros desesperados do meu primogênito. Três semanas e nada, a ferida crescia enquanto ele emagrecia. Ninguém me contou como segurar o bebê e dar-lhe o peito. Muita coisa a gente aprende na marra porque nossas mães “esqueceram.” Os vídeos nas aulas de preparação ao parto não é mão na massa. O boneco demonstrativo na aula de Lamaze está longe da realidade de uma criança de carne e osso e esfomiada nos braços. Enfim, sejamos modernas e sem preconceitos. Contratei uma consultora em amamentação e em poucas horas o problema foi resolvido. Me senti realizada como qualquer outro mamífero. Estava alimentando a cria.

Esta crônica era mesmo pra falar de toda a minha incerteza no meu papel de mãe (quem é mãe sabe, nunca sabemos se estamos fazendo a coisa certa... quem é filho também tem lá as suas dúvidas). Depois destas linhas e milhões de cenas rebobinadas na memória consigo derramar as minhas inseguranças e pouco reclamo dos meus filhos. Ela deveria ter começado assim: “Meus filhos até o dia de hoje competem com aqueles que me chamam pelo telefone.” O texto tomou rumo novo, voilà.

Inspiração nasceu de um telefonema pra mim do meu pai. A conversa durou pouco. Meus filhos, sempre educados em todas as outras circunstâncias, menos esta, cortou a minha conversa ao telefone com seus berros, chantagens e apelos. “As crianças no Brasil não são assim não, a gente fala no telefone sem problemas, elas se viram pra lá. Vocês também não foram assim não,” completou meu pai, certo que a nossa cultura brasileira permanece a mesma há várias décadas. Na hora respondi meio que justificando os gritos das crianças, “sabe como é, pai, aqui a gente cria filho muito só, eles se tornam muito dependentes da gente. Por isto não conseguem dividir a mãe,” disse eu, pensando mesmo nas empregadas brasileiras que tomam conta de tudo, que maravilha.

Pela noite me arrependi. Sou uma mãe que escolheu ter um papel ativo na educação de seus filhos. Tudo tem o seu preço. Há de chegar o dia quando poderei entrar no banheiro e curtir minha privacidade sem o receio de ser interrompida, ou telefonar a um amigo e ficar de papo pro ar. Tento lembrar do meu regresso ao trabalho e já posso sair pra jantar ou viajar uma vez ou outra sem que se sintam abandonados. São crianças felizes e seguras. Há um o tempo particular no amadurecimento de cada um. Há de ser ter paciência, eu repito para mim mesma, não posso esquecer. Assim como as pedras jogadas com precisão, a liberdade acontece a cada pulo.



Victor e Henry vendo a chuvar cair no pátio do Cloisters, NYC, 2007