sábado, 25 de agosto de 2007

Terminais e Sonhos Desativados

De Aline Yasmim

Acelero. Sempre estou com pressa. O trânsito da cidade anda infernal em meio a políticas públicas pré eleitorais – estratégia do tipo cava buracos para inaugurar no último ano de mandato. A cidade de Vitória é uma ilha – poluída – com duas pistas principais. A que margeia o mar e sua paralela. As vicinais nem se pode considerar vias de acesso, comprometidas com bifurcações incalculáveis. Estamos num beco sem saída.

O volume de estrangeiro é vigoroso e chega curioso todos os dias – migrantes e imigrantes rumo a terra do ouro negro. É certo que nossa cidadela vai tomando ares de cidade grande e com ela, o ônus e o bônus. Tenho pensado na contabilidade dessa simetria e estou convicta de que o ônus é maior e aponta seus vértices para nós residentes eufóricos por promessas e oportunidades.

Outro dia, em meio a mais uma produção pública, fui abordada por um jovem senhor com camisa estampada a passeio numa bicicleta azul. Eu falava entusiasmadamente ao celular e não pude entendê-lo até sua terceira fala, compreendida simplesmente pelo gesto certeiro da arma em punho. O tão inocente senhor vocifera: “- Passa o Celular”. Eu, imersa nos meus problemas habituais, só fui entender o tão insistente assunto quando o trabuco metálico mirou em minha direção.

– O CELULAR! dizia o tal homem apressado.

Com sorte e a bolsa no carro, acatei solícita e de cabeça baixa - entregando-lhe o objeto e salvando todo o resto, inclusive a mim mesma.

Dia semelhante há aproximadamente um ano quando saí em disparada com Caê, pra fugir de um provável sequestro relâmpago. O mesmo gesto, o mesmo olhar e o brilho metálico 38 num domingo sorridente por volta do meio-dia.

Existe ódio no olhar dessas pessoas. Confesso que sempre procuro entender o Eu que fez por merecer. O Eu – outrem. O Eu, que não sou eu. Sou a injustiça de uma vida contraponta, da qual participo e compactuo até onde não quero, mas que nem sempre posso refutar. Faço parte da minha vida e ponto. Faço parte da vida dessas pessoas também. Não tenho como negar. O ódio me entristece e desampara.

Paro e tento entender o que está acontecendo, mas preciso estar em movimento. Não tenho onde parar, nem pra apreciar o dia que está de fato bonito – visto de um mirante da nossa baia de Vitória. O mar azul (que engana) lambe as costas da cidade. A cidade é bela e seduz. Vejo claramente a metáfora da mocinha Vitória que está crescendo – bonita e perigosa, do tipo vilã das novelas globais.

O carro corre e me deparo com a estupenda igreja evangélica para 10.000 pessoas instalada em tempo recorde na via continente de um bairro privilegiado. Aliás na Avenida N. Sra. Da Penha (supeito por precaução, a conveniente abreviação do endereço para Av. Reta da Penha – outro nome possível). Parece-me pelo porte e pela velocidade da obra, que também traz sinal dos tempos. Estamos de fato crescendo – se é que isso possa parecer desenvolvimento.
"A religião é o ópio do povo", dizia Karl Marx. Seria essa lógica então?
Enquanto cresce a violência, a certeza da finitude, a falta de espaço, cresce o mercado da fé e a promessa da eternidade? Conjecturas instantâneas.

Passo pela beira-mar. Nela, dois pontos abandonados há tempos de um terminal aquaviário - ignorados. Vivemos numa ilha, logo também deveríamos usar barcos – silogizo. Não é possível ainda entender o engarrafamento que se segue, interminável. Calculo que em apenas 05 minutos percorreríamos o que de carro ainda fazemos em uma hora, e de ônibus - o dobro. Diariamente milhares de pessoas circulam enjauladas em coletivos desumanos em longos trajetos desnecessários.

A cidade é portuária e carros desembocam vertiginosamente em containers gigantescos. Não temos ciclovias, as calçadas estão depredadas e uma perspectiva vitoriosa de metrô, nem de perto parece viável.
É o caos urbano – fruto do ônus que já mencionara.
A cidade cresce - na promessa do petróleo. Os coronéis se fortalecem e a panela de pressão está em pleno vigor. Nela, todos fervem de pavor, exceto os que preparam a mesa - famintos.

Observo. Faço discursos animados. Outro dia ouvi que não deveria dizê-lo para manter minha relação política. Nem quis pensar sobre isso. Minha voz é minha soberania, afirmo.

Olho para os vizinhos de trânsito e eles estão com expressões cansadas. Eu danço solitária no banco apertado - INXS pra minimizar a exaustão. Os ônibus carregam sonhos amontoados, mexem seus corpos apenas em curvas. Passam pelo terminal desativado e não o vê, esqueceram-se das promessas do metrô, guardam suas bicicletas em casa – por segurança – reservadas àqueles que não tem medo e nem pensam em ciclovia. Também não observam o teatro em frente, prestes a ser demolido enquanto artistas suplicam agonizantes. Cultura não enche barriga – diz o velho político.

E as pessoas adormecem em pé no trajeto até suas casas ou comemoram aniversário, já que ali passam grande parte dos seus dias. No ônibus não tem música. Tem grito de menino pedindo gorjeta, tem idoso doente e gente caindo na roleta.

Fraternité, Igualité e Liberté. Tento buscar algum princípio na humanidade que tenha dado certo, nem Marxismo, nem ideal cartesiano burguês, nem suecos suicidas.

Sem utopia ou distopia, a massa apenas espera e nem sabe o quê. Eles não se lembram. Não pedem nada ou são ignorados.

Resta o ópio como solução. que cada vez mais enche igrejas (in) perfeitas.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Para Não Esquecer

De Simone Silveira, Agosto de 2007

Três horas da tarde de ontem, o carteiro me entregou um papel cartão rosa choque. Era uma comunicação de comparecimento ao correio. Corri. Há um bom tempo que não recebo cartas tão importantes. Julgo-as, inocentemente por opção, de valor elevado por serem registradas.

Há de se levar em consideração o cuidado extra do remetente pois não quer que seu leitor fique a ver navios e sua obra caia em mãos desafortunadas que jamais apreciarão a dedicação de se escrever uma carta, levá-la ao correio, dá-lhe tratamento VIP, e com coragem, tirar aqueles reais extras do bolso, ignorando a insistente pulguinha atrás da orelha que sussurra— e aí, boboca, palhaço, vai pagar mais? E se a carta acabar chegando de qualquer forma? Nunca se sabe, meu chapa... Você perde, mané.

A pulguinha pára para se coçar e então aquela cena da multa presa no pára-brisas lhe vem à cabeça. Multa, eu? Falta a humildade de colocar aquela moedinha na máquina, ou pagar aquela gorjeta extra pro flanelinha. Tudo pra driblar o sistema e brincar com a sorte. Como é bom a adrenalina correndo pelas veias, meu caro. O jogo vira. Vez ou outra, mais cedo ou mais tarde, ele sempre vira. E a multa está lá, brincando contra o vento que te irrita ainda mais. Não seria melhor ter colocado a moeda, ou mesmo duas só pra garantir a paz de espírito. Há os que cumprem, não são jogadores. Melhor comprar mais selos, registrar a carta e ter a certeza que é tudo pela felicidade geral do leitor!

Ainda me lembro do tempo, há uns dez anos atrás, antes da internet e dos emails, como me extasiava com a chegada de cartas. Nunca deixei de prestar a atenção ao horário de entrega das correspondências. Hábito. Aprendi bem aquele prazer.

Digo mesmo que foram as cartas e a certeza da chegada delas que me salvaram da depressão e da falta da pátria quando aterrizei nos EUA. Estava, como se diz aqui, homesick. Fechava os olhos e sentia o gosto do sal da água do Arpoador, o gosto do milho carregado na manteiga do ambulante em frente ao Canecão, das ladeiras da Lapa, do carnaval, me via atrás do Suvaco do Cristo e do Simpatia, blocos carnavalescos inesquecíveis— o carnaval havia acabado de acabar e eu partira. As lembranças eram ainda latentes, o Baixo Gávea e seu bafo que não deixava de ouvir até quando dormia, janela virada para os braços do Cristo abertos para mim, o meu namorado de então, o Jardim Botânico e o jardim da escola de teatro da Uni-Rio, na Praia Vermelha. Saudades do palco do teatro Lucinda e de alguns malucos do grupo de teatro Os Fodidos Privilegiados, Dirigido por Antônio Abjamra e João Fonseca. Os Privilegiados foi a minha casa e minha família por um ano e meio.

1996, A companhia havia acabado de se reunificar depois de alguns anos parada. Cara nova, grupo novo, tudo muito frágil. Explico: a dedicação do grupo ao espetáculo e companhia era intensa e inevitável. Precisava de uma reestruturação. Éramos muitos, o grupo era de alguma forma "democrático." Entrava qualquer um, desde que fosse comprovado que o teatro era uma escolha profissional do artista (carteirinhas do sindicato dos artistas, ainda me lembro. Quem não tinha, acabou ganhando). O espetáculo foi O Que É Bom em Segredo É Melhor em Público, 1996.

O diretor, Antônio Abujamra, juntamente com João Fonseca, tinha tido uma idéia brilhante no início do processo, que ele mesmo não participou pois estava dirigindo novela em São Paulo e vinha a cada duas ou três semanas para dar forma à peça. O homenageado seria o Nelson Rodrigues. Montaríamos O que é Bom em três atos baseados na adaptação do folhetim O Homem Proibido e rechearíamos os entreatos com cenas baseadas nas crônicas do Nelson. O entreato era a genialidade da montagem.

Eu gostava de chamar o grupo de Fodidos, como o Abujamra. Fodidos porque até os nossos figurinos eram pagos por nós. Não se fazia dinheiro lá. Patrocínio mesmo só alimentício. A nossa fome era religiosamente saciada nos intervalos dos ensaios à base de kani, aquela carne imitação grotesca de siri parecendo cigarrilha. O kani chegava aos montes durante os ensaios e apresentação. O significado mais profundo da palavra Fodidos, era a analogia direta e intrínseca à nossa condição de artista no Brasil. Éramos todos jovens, sonhadores e estávamos fazendo arte em um país que até hoje não acredita na educação, na classe artística e seu ofício, na política limpa como forma de evolução de um país e seu povo.

O Que É Bom em Segredo É Melhor em Público, estreou aos trancos e barrancos para os atores. O ilustre Abujamra, apesar de ser um diretor excepcional, mostrou um lado anti-ético decepcionante. Cortou 2/3 do espetáculo dois dias antes da estréia, deixando assim, não mão, mais da metade do elenco, me incluo nesta leva, depois de um ano de pesquisa intensa. Aprendi ali a minha primeira grande lição de desrespeito ao artista. Talvez a mais dolorida de todas pois se deu dentro de casa.

O processo de trabalho, começou com visitas semanais à Biblioteca Nacional para fotografar páginas dos jornais onde o Nelson havia escrito suas crônicas. Naquele tempo não havia quase nada da obra jornalística dele publicada em livro. Quando vi os inúmeros livros de crônicas sendo vendidos na FLIP—Festa Literária de Paraty, quase tive um enfarto. Tudo lá, prontinho pra levar para casa. Trouxe. Progresso gigantesco na literatura brasileira. Depois das visitas à biblioteca e dinheiro suado gasto para a xerox e passagem do próprio bolso, foi a vez das leituras e mais leituras— peças, romances e textos. Palestras. Começamos aliás, no Joquey Clube, na Gávea, até conseguirmos o espaço do Lucinda, na Cinelãndia. As noites acabavam ao lado, em brahma e batata frita no Amarelinho. Mesas de discussão, dentro e fora do teatro. Entre a aparição da Camila Pitanga, dando o ar da graça e de sua presença marcante por duas semanas, provando que nem todo global é, aliás insuportável e a saída dela, muito sangue rolou naquele grupo e naquele teatro, que diz a lenda ser mal assombrado (assombrado mesmo, era para mim voltar pra casa cruzando a Cinelândia à uma da manhã em dia de semana).

Camila era, penso ainda ser, simpática. Falava com todo mundo. Dizia estar em busca de uma experiência teatral. Trocamos até telefone. Iríamos tentar trazer meu ex professor da Uni-Rio, Léo Jusi, pra falar do Nelson pro grupo. Daí veio convite melhor, e ela cheia de ginga, partiu. Não sem antes deixar para trás um rastro da sua beleza latina da mistura das raças e da sua bunda perfeita e redonda, segunda a própria Pitanga, eleita naquele ano, a melhor da rede globo de televisão (perdão Camila, prometi confidência. Mas não fiquei famosa e duvido que ainda se lembre de mim. A verdade, mais cedo ou mais tarde sempre vem à tona. E hoje, quem se importa? Queria eu ter a sua bunda. ).

Os problemas daquele ano continuaram. Talvez não tão para a parte privilegiada do grupo. Quem faria o papel principal ? Era a nova questão. Uma outra mocinha, selecionada para o papel principal, durou poucos ensaios, foi selecionada para um gig melhor, novela no SBT e partiu para Sampa. O negócio é esquecer gente famosa e lançar sangue novo e ambicioso, como foi com a Cláudia Abreu no papel de Hamlet da memorável montagem a seguir premiada de Abujanra de Um certo Hamlet, em 1991, só com mulheres. Foi nesta montagem, que decidi ser atriz profissional, estudar teatro pra valer na universidade. Ainda trabalho com este cara, pensei, então, no auge dos meus dezesseis anos.

Quem? Quem? Quem? Põe a Guta Strauss, que acaba de chegar do Sul, de Curitiba. Guta tinha alguns conhecidos que já trabalhavam com o Abu há algum tempo, foi recebida com carinho extra. E por que não? E lá entrou a Guta. Menina cheia de energia, determinação. Ambiciosa. Tinha mesmo uma fisionomia rodriguiana, misteriosa, quase macabra. Ela era despachada. Sem medo. Repito, aquela menina não tinha medo de nada, do palco, de gente, do diretor, das luzes, dos erros, nada, absolutamente nada. Era impressionante. Eu a detestava como atriz, meu santo não batia com o dela fora dos palcos, mas admirava o profissionalismo e a eficiência. Guta aprendia tudo numa rapidez, marcação, fala, tudo. Assim foi. Papel escolhido é a vez de ensaiar. Era necessário colocar o volume exacerbado de informação coletada pelo grupo numa forma simples e atingível ao público. Paralelamente começou a ser produzido um outro espetáculo de Nelson Rodrigues, a adaptação de Abujamra e João Fonseca, assinando também a direção, para o romance O Casamento, Guta assumiu aquele desafio também.

A minha casa virou um antro rodriguiano na época dos ensaios. Arrastava móvel pra cá, levava a reck da televisão para lá. O meu namorado, que odiava gente em casa, estava à beira de um ataque de nervos. E eu decorava as frases da Engraçadinha e Seus Pecados e procurava alucinadamente apagar o naturalismo da sua imagem de seriado global. Expressionismo. Era só o que ecoava naqueles dias. Precisávamos de espaço. O Dulcinda, na reta final, estava mais ocupado com os ensaios de O Homem Proibido e O casamento. As cenas rodriguianas que conectavam a trama tinham que se virar para sair do papel. A gente ensaiava em qualquer lugar. Ano louco aquele. Peça pronta, ensaio geral. Chega o diretor de Sampa. Passamos a peça. Abu só balançava a cabeça. Muito longo, três horas e meia de espetáculo, dizia ele, o público vai dormir. Medo da Bárbara Heliodora sentada na primeira fila no dia da estréia? E não é que ela malhou mesmo? Detestou tudo. Temos que enxugar, concluiu.

O Ducinda quase veio abaixo. Cabeças rolaram, obviamente. Foi um deus nos acuda nos bastidores, novatos à beira do pranto. Depois do corte, lá se foram quase todas as cenas do entreatos, dois dias antes da estréia. Depois do choro, o boato—Tudo pelo processo. Não é esta a desculpa dita preferida aos que vivem pela arte no Brasil, principalmente aos que sonham em acontecer?

Peça enxuta, o resto do povo, virou mesmo, obviamente, povo, plebe, coro, no fundo do palco, cinqüenta atores da companhia, sentados em cadeiras duras durante duas horas e meia no fundo do palco do Teatro Lucinda. Imóveis. Mão nos joelhos. Só podiam piscar. É yoga. O negócio é dar vida aos olhos. Aos olhos, pupilas e cílios. Sobrancelhas, jamais! Juro ter sido esta a mais dolorida temporada teatral de todos os tempos. Tudo pelo teatro, era assim para muita gente ali— O tempo, o dinheiro dos pais, o próprio vindo dos salgadinhos, langeries e produtos da Natura vendidos no intervalos. Eu só pensava nas três classes que havia trancado na Uni-Rio, no meu dinheirinho suado de vendas de bombons e jóias entre uma matéria e outra na faculdade. Tudo em vão. Tudo? Claro que não. Pois não estou aqui hoje recordando com saudade, e digo mais, até com um certo prazer daquela experiência? Foi uma escola. Certamente. Verdade que não esqueço o desrespeito do mestre às suas próprias crias. Abraão sacrificando seu próprio filho para adorar a seu deus.

Tudo pela arte. Abú cortou muito. Resolveu eliminar os figurinos de quem não era elenco principal, vestíamos camisolas sexy preta. Nem deu pra salvá-las porque ele as detestou. Na tentativa final, quis que fossem cobertas em renda dourada. Passei uma noite com a figurinista e uma latinha de spray nas mãos tirando o negativo da renda sobre a camisola de laicra barata. Camisola rendada, cortada da peça também. Dezenas e dezenas, lixo. Nem deu pra levar pra casa a peça que me custou, ainda me lembro trinta reais. Elenco de apoio, sim viramos apoio dois dias antes da estréia, entra em roupa cotidiana—calça jeans e camiseta, resolveu o mestre. Ponto. Do pouco que restou da extraordinária obra do Nelson baseada nas crônicas e engavetada na Biblioteca nacional, que garimpamos e adaptamos, foi a dispensável mini cena com a loirinha linda de desessete aninhos. Era ligada ao Glauber Rocha, tinha o sangue do mundo do cinema. A loura não hesitou em ter uma cena de um minuto completamente nua, à meia luz. Era a sua única e primeira aparição nos palcos brasileiros. Abu entendia, a platéia também. Era Nelson Rodrigues.

Ao imigrar para os EUA, o teatro, foi o que mais me trouxe sofrimento e gerou saudades. Traidora dele no seu conceito e princípio mais puro. Carreguei esta sensação e culpa por anos. Tudo pela arte? Tudo mesmo? Eu falhei no meu próprio país. Léo Jusi escreveu no quadro negro da Uni-Rio em uma aula de Direção Teatral —você quer o teatro, e o teatro, te quer? Ali ele deve ter tirado metade da turma do trilho. Jamais esqueci aquela colocação. Exílio para mim aos vinte e dois anos. Meu exílio foi espontâneo, necessário, para esquecer os amores deixados para trás. E as cartas, as cartas me salvaram. Telefone era muito caro, ninguém ligava mesmo e eu não ligava de volta. Não sabia dos cartões telefônicos. Nem sei se tinham. Além do mais, sempre detestei falar pelo telefone.

As Cartas eram conforto, entre elas as de Rosa, minha grande amiga, irmã de alma, chegando semanalmente e sendo respondidas prontamente. Lia uma e a saudade era saciada. Nas respostas que lhe enviava, contava sobre a América, e assim eu ia me entusiasmando com tudo que era novo, com as minhas próprias impressões da realidade observada e vivenciada. Até que fiquei, fiquei mesmo, namorei, casei, tive filhos, jurei à bandeira, virei cidadã, estou voltando às artes— ao teatro, à costura, à leitura, à escrita. Tudo sendo feito novamente. Bem feito. Com amor. Dedicação e retorno. Há coisas que não mudam. Adormecem. De tanto cansaço. Ainda bem. Alívio. Há outras que evoluem muito rápidas, como a comunicação, o surgimento dos emails, chatrooms, msn, skype, e outras maravilhas do mundo moderno, que estou aos poucos me simpatizando.

Mais cedo ou mais tarde, eu me modernizo, me atualizo, I will catch up, I will be on the ball, o leite jamais ferverá e transbordará, não perderei o trem das onze, e vou parando aqui para não perder a originalidade do texto. Longe de plagiar o mestre Joaquim Ferreira dos Santos e suas expressões ressuscitadas do limbo, da lama, do escuro amedrontador do esquecimento. Esquecimento, que um dia, mais cedo ou mais tarde, cairemos todos, a maioria. Não cairemos, despencaremos, como fruta amadurecida, amarelada, murcha, manchada, bichada, flácida, seca, sem vida, sem suco. Inevitavelmente, desprevenidamente, assim sem mais nem menos, num dia quente de verão, ou mesmo por uma chuva forte, quem sabe pela força delicada da leve brisa interrompendo a natureza caridosa que ainda permite o fruto gozar do seu último gole de seiva.

Quando eu, você e o próximo cairmos, de verdade, ou no esquecimento, não restará muito, cartas, quase impossível. Emails salvos no hard drive, talvez. Mais cedo ou mais tarde se apaga tudo para não sofrer. São elas, as cartas, objetos de afeição quase perdidas, quase esquecidas pelo desuso, pela evolução da humanidade, como o latim, que pena, como uma lembrança vaga, um beijo de outrora. Eu gosto mesmo delas, de verdade. Sou tão obsoleta, fora de moda. Então, pedi perdão ao santo padroeiro das mães, coloquei os filhos na frente da televisão, gritei pro marido trabalhando no quarto ao lado que iria dar uma saidinha por quinze minutos. Fui ao correio buscar a minha carta. Há anos não recebo uma.

Não era. De dentro do envelope, puxei o conteúdo. Li Hierosgamos—Diário de uma Sedução, de Noga Lubicz Sklar.

Minha querida amiga de Oficina Literária de Paraty colocou dedicatória no seu livro capa rosa choque. Coincidência gostosa. Tem dedicatória, pensei, pode se dizer que é carta. E assim foi para mim. Fiquei feliz, ganhei meu dia! Carta longa é este livro. Noga, vou ler sua obra como se estivesse me escrito e contado um segredo seu, sagrado. Prometo te enviar uma carta de volta com comentários ao término da leitura. O meu obrigado é esta crônica que dedico agora, neste exato momento, à você.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Belle&Sebastian ≠ Beirut

De Bruno Vaks


Animado com o sábado à noite, após um showzinho com a participação de Marcelo Camelo (Los Hermanos em recesso) mostrei no carro para duas amigas o novo som que descobrira ao ler uma crônica do Dapieve há algumas semanas. Confesso que li com interesse aquela crônica, porque crônica de musica é comigo mesmo. Gosto. E muito! Só a possibilidade de desvendar novos ritmos e escutar novos sons me entusiasma. E se são da linha auditiva que eu sigo, melhor ainda. Por isso recomendo a crônica dele no O Globo e aqui vai uma recrônica (nem sei se isso existe, o importante é criar!).

Pois bem, não consigo me lembrar muito bem de todos as características e qualidades da banda que comecei a escutar. Ahh! O nome da banda é Beirut. Eles não são do Líbano, muito menos árabe, são jovens de uma cidadezinha de Nova Jersey, estado que o fato mais importante a se saber é que faz divisa com a cidade de Nova York.

O porém foi que ao tocar a primeira musica no radio do carro, uma das amigas falou: -“ Já adorei, me lembra um pouco o Belle&Sebastian...” Peraí, como assim? Depois de ter escutado, pelo menos três semanas seguidas, as musicas deles, nunca tinha passado pela minha cabeça que eles pareciam Belle&Sebastian. De cara não concordei e me veio as imagens do show que B&S (chamarei assim, ok?) fez aqui no Rio há alguns anos atrás.

Curioso como sou, fui atrás de bandas novas no chamado Lab, palco experimental do festival. Não me lembro qual outra banda internacional estava agendado junto a eles, mas me recordo que fui atrás da outra banda que conhecia bem. Mas como era show conjunto, resolvi ficar para escutar o som do B&S, já que um amigo dizia mil maravilhas da banda. Lamentava que uma das cantoras ou cantores não estaria presente. Até então OK! Já estava satisfeito com a noite quando entraram. Confesso que estranhei seu som e tudo aquilo que tinham me dito sobre eles veio ao contrário. De banda animada, achei chato demais. Da melancolia proposta, conclui que era uma euforia exacerbada. Da musicalidade variada, não passava de banda feijão com arroz. Lembro também que o lugar estava lotado de jovens adultos como eu, com suas roupas estilosas, cheios de personalidade alternativa, numa tradução perfeita da geração indie que encontramos hoje em dia.

Uma coisa me atordoou enquanto assistia a performance. No final do show com grande parte da platéia em polvorosa, chamaram algumas pessoas para subir ao palco. Logo começaram a dançar e viu-se uma enormidade de rótulos iguais. Como saias xadrez, peles bem brancas, piercings e meias até acima do joelho. Desculpem-me não sei como as chamar. Lá em cima as pessoas pulavam e dançavam sem parar, rindo e cantando a musica que há pouco desconhecia. O que me incomodou foi a alegria indiferente que vi nos rostos daquelas pessoas. O que elas queriam mostrar, de fato, naquela idealização completa de felicidade? Não poderei me esquecer da garota rechonchuda que pulava sem parar, sorrindo metálico para a platéia, quase em êxtase com sua mochila presa às costas balançando de um lado para o outro.

Isso foi há alguns anos. Hoje sei que não poderei desmistificar os que gostaram e muito, daquela performance. Eu nunca mais escutei B&S e criei uma certa repulsa. Por isso minha explanação toda sobre a igualdade de sons totalmente diferentes. Ao escutar Elephant Gun, do mais recente EP deles Lon Gisland, sinto uma paz invadir meus ouvidos e conseqüentemente o corpo. Uma mistura de violas, sopros, acordeons, pianos e pratos equivalentes a uma pequena orquestra. Não conheço muito de musica clássica. Um som que já escutamos na (extinta?) Los Hermanos e até nas bandas de colégio aonde todos uniformizados desfilavam em praça publica no Sete de Setembro. Não só a mistura de sons, mas também uma mistura de ritmos como o próprio Dapieve divaga em sua crônica.

E eu como judeu, que enraizado desde criança escuto musicas tradicionais do Leste Europeu pela ascendência ashkenazi, posso dizer que eles me remetem a um tempo que não vivi. Um tempo onde não existia radio, muito menos carros. Cavalos, fornos a lenha e danças em roda (pois esta, vejo inúmeras vezes em eventos judaicos e até em bandas novas, como a Móveis Coloniais de Acaju, que assisti no primeiro semestre). Onde andávamos a pé e uma carta demorava semanas para chegar em seu destino. Mesmo a cidade sendo a 500km da sua. Eles me remetem a estar passeando estático num carrossel imaginário onde todos celebram a felicidade comovendo até os melancólicos e saudosistas. Onde maçã do amor era motivo de declaração de amantes e as historias eram contadas ao lado de lampião a gás.

Por esse motivo não posso aceitar essa equivalência e é difícil não recomendar aos entes queridos, por que musica precisa-se ouvir e o principal, gostar. Não adianta escutar só porque todos dizem, você tem que sentir que algo muda em você quando elas começam. Mas desta vez, não teve jeito e me mantenho parcial a favor deles. E que venham ao Brasil.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

sobre sonhos e sentidos

De Aline Yasmin

Tenho corrido muito. Corrido suficientemente insuficiente para me ater. Quando falo ater, falo em atar, em parar, olhar, ouvir. Tinha jurado pra mim mesma que não voltaria a fazer isso. Mas, tenho um monstro dentro de mim que precisa ser ninado, enganado, convencido. Quando percebo, ele se apossa dos meus gestos e por pouco não me domina. Volto, refaço o percurso e explico pra ele - pacientemente - que CHEGA! Não tenho muito paciência às vezes, por isso não posso parar de filosofar. A filosofia me convida a ser melhor. Esse espírito me enobrece. O espírito de quem sabe que sabe pouco, que precisa saber mais e ainda assim, que nunca saberá o suficiente. Acho que esse argumento me tranquiliza porque me impede de querer superar o outro, na verdade fico mais generosa - inclusive comigo.
Saber o não saber é o suficiente para adormecer o monstro. Isso, Sócrates faz dormir. Interessante pensar que faz dormir enquanto desperta. Despertar seria então um estado de sonolência? Não a sonolência no sentido radical da palavra, mas essa paz, esse sonhar, esse estado onírico transcendente?? Já havia dito outras vezes que sonhar me desperta. Talvez nunca tenha pensado no sentido verdadeiro da premissa. Aliás, sentidos = ilusões (David Hume); verdade = razão (Kant)...parece-me incoerente. Filosofar...quer saber? Quero definir meus sentidos - plenos e impuros. Hoje como devem perceber, estou "bem" contraditória.
Bem? Isso é Bom? Acho que preciso dormir. Quem sabe assim, eu volte a realidade.?!

terça-feira, 14 de agosto de 2007

A sutil arte de escoar pelo ralo

De Bruno Vaks


Sabe quando você está com a pagina em branco sem ter idéia para escrever uma historia? Logo hoje te dá vontade de escrever uma historia, mas a idéia trava, a cabeça não pensa e você não consegue tirar uma frase da cabeça? Provavelmente não, porque não são muitos que usam a escrita de oficio. Nem eu! Vejamos outro exemplo, você corporativo, tem que imprimir aquele relatório enorme para o seu chefe e empaca porque deu erro na fórmula da planilha XYZ e você não consegue achar aonde que está o maldito problema.

Mas o fato é que uma frase me atazana desde a manhã, quando li num cartaz em uma padaria o seguinte: “A sutil arte de escoar pelo ralo e .....” (esqueci o resto). Confesso, achei linda. De uma profundidade tremenda que não sei aonde pode chegar. Muitos vão dizer no mar. Afinal, aonde os dejetos cheios de água acabam. Do esgoto para o mar. Mas o ralo é diferente. O ralo não é conhecido. Ninguém conhece as paredes do ralo. O seu caminho até o esgoto principal. É claro que você já se pegou olhando no banho, após ficar com o shampoo durante três minutos na cabeça conforme manda as instruções no verso do dito cujo, porque se você ficar um minuto ou dois o produto não fará efeito. Voltando para o banho, você entra debaixo do chuveiro e vê toda aquela água cheia de espuma indo rodando feito redemoinho a entrar pelo ralo. Sabe lá aonde isso vai chegar.

Aposto que você nunca chegou perto do ralo para ver o que há dentro. Cem por cento das vezes é pelo medo de lá sair um bicho inenarrável, com quinze braços, cara medonha e lotado de vingança das milhões de vezes que você utilizou o ralo para esvaziar seu box.. Mas esse medo reflete sim, a barata que costuma sair de lá e que tens muito nojo.

E se não tivesse o ralo, como sairia a água do seu box? Ia transbordar a sua casa, a menos que tomasse banho de rio ou ao ar livre, com uma grande camada de terra embaixo de você criando um grande lamaçal. Nem com havaianas você se salvaria. Já pensou na dondoca? No cantor de chuveiro? E as pessoas que escrevem no box quando ele fica embaçado? O que elas fariam na hora do banho?

Digamos amem ao ralo, pois sem ele ficariam petrificados de tanto cheiro ruim. Afinal, é uma arte que estamos falando. O verbo “escoar” já me soa como uma onda, como um fluido que passa de um lugar para o outro. Ou essa é a definição? É de uma grandeza. Juntando a isso o fato de ser arte, só podemos finalizar com um adjetivo que demonstra tudo isso sintetizado: sutil.

Por isso, prestem a atenção em seus movimentos e ajam com carinho ao desentupir. Muitas vezes a culpa é sua e não do ralo. É capaz de ter sido o seu cabelo que tenha enrolado tanto que não deixa mais a água fluir.

Apesar de todas essas colocações acima não terem muito a ver com a pagina em branco, pode se dizer que a intersecção de todas essas informações inúteis conseguiu levar um tempo enorme de explicação e ter tido a oportunidade de se tentar escrever uma crônica, num dia que a maioria das coisas não dá certo, o melhor para se fazer é começar um bom livro e adormecer sobre ele.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

PALAVRA É DOM E DESAFIO (*)

De Aline Yasmin

Escrever é realmente um processo interessante. É um estado contemplativo de abstração espiritual – tudo isso pra dizer a mesma coisa. Eu particularmente escrevo como quem bebe água quando está com muita sede. Posso pensar também em coisas escatológicas e ao que realmente me remete é o vômito. Talvez seja aquele estágio sartreano da náusea. Escrever pra mim é também um processo doloroso. Quando tudo transborda. São raras as vezes que escrevo porque estou muito feliz. Felicidade acho que combina com música, melodia, ainda que também possa combinar com tristeza. Acho que música combina com tudo. E eu adoro cantar, mas normalmente canto feliz ou pra expressar alegria.

Não sei escrever por encomenda – embora já o tenha feito por milhões de vezes na minha carreira publicitária (talvez seja esse um dos meus traumas) e os textos me surgem em formas diversas. Muitas vezes sou poesia, outras prosa, mas se por acaso exercito muito um estilo fica mais complicado voltar pra outro. Tenho algumas teorias complexas sobre isso, que passam da física quântica a neurociência - fácil pra quem viu o filme “Quem somos nós”, misto de teorias filosóficas, teológicas e científicas - e auto-ajuda. Vale ver e tirar suas conclusões. Ajuda.

Chico Buarque disse outro dia sobre a diferença entre escrever livros e fazer música. Quando está em um dos processos, fica difícil pensar no outro. Quando termina, corre para o outro.

Nunca parei para pensar muito sobre isso, escrevo como respiro desde que “me conheço por gente” – diria meu pai. Outro dia porém, fui convidada a palestrar para criancinhas na escola do meu filho. Foi um momento inusitado: todos em pezinhos me esperando ansiosos com olhares curiosos sobre meus gestos.

A professora fez uma abertura, agradecendo minha presença e convidou algumas delas para declamar … em poucos minutos tinha diante de mim, borboletinhas, rios desaguando no mar, pássaros em festa e flores na floresta. Eram as criancinhas com as palavras ensaiadas equilibrando-se nos pequenos e graciosos corpos - ao demonstrá-las. Debulhei-me secretamente em lágrimas. A palavra. Era o que nos unia. Crianças respeitosas e eu, que trato pensamentos como refugo do que nego. Como vômito, numa experiência visceral do ego.

Na sequência, as perguntas me achataram. Encolhiam-me pela dignidade que davam ao fato, até que finalmente uma me trouxe a nocaute: “Tia, é bom ser uma poetisa ? (que eu sempre nego – ao afirmar-me poeta) …você pode fazer as pessoas felizes! ” A ingenuidade da pergunta e ao mesmo tempo afirmativa me colocava em cheque. Faria mesmo alguém feliz? Muitos me fazem (pensei)

Teria eu essa pretensão? E enfim, por que escrevo? Pra quem escrevo?

Minhas têmporas carregavam no carmim…não saberia responder suas perguntas (crianças espertas) - E o que é pior: nem a mim mesma.

Cheque-mate.

Ensaiei um coro no final e cantamos juntos. Todos felizes.


(*) o título é na verdade uma frase de um poema meu (seu, nosso).

terça-feira, 7 de agosto de 2007

RELATO

De Simone Silveira

6 de agosto de 2007. E a tempestade em alto mar? Já passou por uma, meu chapa?

Final de semana trancada dentro do meu ateliê costurando minhas criaturinhas de pano, feltro e algodão, assim foi. Sábado, baile rap rolando no parque em frente `a minha janela. Entra e sai agulha no tecido, os olhos vão se formando. Eu faço olhos. Vou enchendo os seus corpos. Eu crio volume à forma flácida. Pensamento voando por outras bandas. No dia seguinte, entrego as criaturas ao novo dono. Vou correndo pegar o trem das duas da tarde, linha Nova York-Boston. Chego dois minutos antes da sua partida. Peito arfando. Fome. Vou ao vagão-restaurante e como um cachorro quente. Lingüiça mal passada, esquentada no microondas. Isso aqui ainda me mata, penso. Celular toca, pego as minhas direções com o meu marido. Agora sei como chegar à Ilha de Martha’s Vineyard. Não é para Boston e sim Kingston o meu destino. Como o Bruno Vaks, preciso aprender melhor geografia. Desço em Kingston. Chove muito. Pego a van até a estação das barcas. Sabe se este é o caminho mais rápido? pergunta um homem ao meu lado, acompanhado da família—esposa algumas décadas mais nova, a filha de quatro anos, um filho de dezessete e a sogra, é claro. Não sei não. Nem sei se este é o caminho, respondi. Puxei conversa. Gosto de conversar. Da onde são? Daqui e de Cuba. Cuba? Como assim? A minha mulher e a minha sogra são cubanas, disse ele, com orgulho. Sou brasileira, confessei. Robby é baterista de jazz, esteve no Brasil, no Rio de Janeiro, no mês passado tocando no Centro Cultural Banco do Brasil. Mundo minúsculo. Descubro os points certos para se ouvir um bom jazz em Nova York e onde comer uma boa comida cubana. No Victor’s. Pegamos o barco, atrasadíssimo. Lucía, la niña de quatro anos encontra exatamente treze pedras brancas para a viagem e as coloca na lancheirinha. Entramos no barco, compro cerveja e amendoim. O mar está bravo, penso se devo comer amendoins e tomar a minha cerveja. Começo, afinal já paguei por eles. Depois daquela ponte, diz Robby, o mar fica um pouco violento. O barco meia hora atrás do schedule resolve ir mais rápido. Voa sobre as ondas. os adolescentes gritam e gargalham de entusiasmo. É adrenalina pura. Lucía chora de medo. Eu penso nas treze pedrinhas brancas que não podem se perder. Ana, tu sabes nadar?, pergunto. Non, ela confessa. Olho para o Robby. Está acertado. Procuro com os olhos a porta e coletes salva-vidas. Conto quatro bueiros no chão do barco. Estou preparada. La hola vem, feroz, gigante. Arrebenta no lado direito do barco. Silêncio. As gargalhadas se calam. O barco inclina-se. Quase tocamos uma linha vertical imaginária. Por um triz não vira. Lucía berra. Ligo para a casa. Amor, o mar está bravo, quase viramos. Um instantinho só, tenho que ajudar o nosso filho lá fora, te ligo daqui a pouco, diz meu marido. Claramente não me ouviu. Desligo. Eis o que se passa em segundos pela minha cabeça: Nos meus vinte, criou-se um medo inexplicável em mim, medo de voar, de altura. Agora nos trinta, não. Não sinto nada. Se o barco virar, penso, acho que me safo e levo um comigo. Da onde vem tanta confiança? Paixão pelo mar? Se ele me levar, vou mesmo, de braços abertos, penso. Pensamento pueril. Não tenho medo. Não penso no futuro. Sinto uma felicidade de ter chegado até aqui, o hoje. Me surpreendo comigo mesma. Que diabo é este pensamento egoísta? E os meus filhos pequenos? Nada. Serão felizes, sempre. Se tiver que morrer agora, neste mar enfurecido, assim é. O marinheiro reduz a velocidade do barco, pede paciência pelos próximos trinta e cinco minutos. Seguimos em paz ao som de “I gotta feeling, I feeling inside,” vindo dos autofalantes e se misturando com o barulho do motor. Dá até para relaxar. Volto a comer meu amendoim. Lucía tira as treze pedrinhas da lancheira. Terra à vista.

O barco não virou, meu chapa, quase, porém não virou. E se virasse?

Soberba ignorância

De Bruno Vaks


Não adianta. Passa ano, vem ano e continuo tendo um certo problema com a geografia. Não é que não goste. Pelo contrário, sempre fui bom aluno nas aulas do primeiro grau, hoje ensino médio. Adorava saber nomes de bacias hidrográficas, explicar o que é planície ou planalto, que tipo de clima tem o continente europeu, ou simplesmente o que são as monções. Mas tenho de confessar algo que me atormenta até hoje.

Sim, confissão na porta da sacristia para o padre orador me mandar quatrocentas ave-marias. Não há maneira alguma de eu conseguir acertar as capitais de alguns estados brasileiros sitiados ao norte do país. Tirando Amazônia e Pará, que são grandes, o resto é um martírio. Sempre confundo Boa Vista com Roraima, Boa Vista com Acre, Rondônia com Roraima, Porto Velho com Amapá e por aí vai numa quase infinita análise combinatória. Não adianta. Continuo errando. Nunca sei onde é aonde. E olha que, inclusive sou formado com pós-graduação (quase coloco meu currículo aqui para vocês verem). Se participasse de programa de auditório com essas perguntas, iria para o brejo sem ganhar nenhum tostão.

Mas esse nem é o caso. O que me traz a esse assunto tão intrigante, foi a entrevista que a Danielle Souza concedeu a uma coluna social do jornal O Globo, semana passada. Para quem não conhece Danielle, ela é a já famosa mulher samambaia do programa Pânico. Eu mesmo já dei varias risadas com o programa. Mas para aqueles não familiarizados, a mulher samambaia é uma ajudante de palco, desses de auditório. A única diferença para as outras que também costumam ser beldades, é o fato dela usar um biquinizinho (vale enfatizar o diminutivo) todo revestido de folhas. Os atributos de Danielle são totalmente visíveis. Seu corpo bem torneado, digo escultural, seus olhos claros, cabelos longos e morenos. Um colírio que prende a atenção de qualquer marmanjo.

Mas o fato também não é esse. O que me impressionou em suas belas curvas devidamente vestidas num vestidinho (de novo o diminutivo) foram suas belas palavras ao responder perguntas frugais da coluna. Nada muito difícil, nada que qualquer ser humano instruído saberia responder. O resultado foi uma galhofa. Fiquei impressionado com minhas risadas que seguiram a leitura de cada frase que continha na entrevista. Era de uma alienígena. De uma pessoa fora do espaço, alguém que sem querer, nasceu. Falando português. Ela poderia ser vietnamita ou de Gana. Não importa. O grau de escolaridade de suas respostas me impressionou. De dez perguntas, não conseguiu responder nove. E que desenvoltura. Cada pergunta feita era respondida com um: - “Ihhhh, não sei!”, “Nossa que pergunta difícil” ou “Podemos pular essa?”.

Ora Dani, claro que pode. Na verdade, você pode tudo. No nosso país aonde corpo é essencial. Mente pra que? Temos de ser verdadeiros com os outros e mostrar a cara do que somos. Você pode ser pedreiro, engraxate, executivo de multinacional, piloto, tradutor e outras quinhentas profissões. O que importa é ser digno com as coisas que faz. E de que se é capaz. Espera-se do ser humano o poder da sabedoria e da educação. Que ele ao viver e crescer possa absorver tudo aquilo que der, tornando-o uma pessoa melhor, para que assim, possa ajudar o mundo a viver melhor. Você não tem culpa de não saber as respostas. Ninguém te ensinou e te disseram que a valorização do seu corpo era muito superior e podia lhe render alguns frutos. Não tem como negar, você é monumental. Um colírio para metade dos cidadãos brasileiros. Mas da mesma maneira que você é um colírio, você também é uma realidade. Com um cérebro pouco exigido trouxe a tona o que nosso país tem de podre. A falta de educação. Te garanto que dezenas de milhares de cariocas se deliciaram com sua entrevista. Se divertiram, zoaram com as possibilidades perdidas por você e com a falta de massa encefálica contida no bate papo informal. Ao mesmo tempo em que traz vergonha, traz também satisfação. De uma maneira que não saberia explicar a você. Um antagonismo crônico capaz de elucidar o mais premiado dos pesquisadores.

Toda vez que passo por você Danielle, pelas bancas me dá uma vontade de te comprar e te conhecer melhor. Mas a possibilidade das respostas me afugenta, para que continue sonhando com as curvas perfeitas da minha imaginação. E enquanto isso passa, pretendo decorar as capitais e estados citados acima para não dar vexame num futuro concurso nacional.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Os Fantasmas de Mário e os Meus

De Simone Silveira



OS DEGRAUS

Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...

(Mário Quintana em o Baú de Espantos)


Comecei a ler mais um dos livros de poesia do Mário Quintana. Baú de Espantos tem como tema central a morte e a exposição, melhor afirmando, a justaposição, de dicotomias e contrastes, como o mundo palpável e o invisível. Há poemas extraordinários como Os Degraus, O Deixador e Poema Transitório. Há uma série de outros poemas de referência à era de Camões. Os sonetos são, para mim, leitura não tão agradável e fluida como os poemas curtos, cortantes e brilhantes do Mário.

A poesia do Mário em mim é transcendental e deixa as impressões mais profundas. Fechei o Baú e os olhos. Tive um sonho absurdo com o meu falecido avô, Aristides Couto.

Aristides nasceu, criou-se e morreu em Bom Jesus do Norte, E.S. Era ferreiro e tornou-se surdo e mudo aos 24 anos devido ao som agudo das suas marteladas no ferro. Eu conheci bem os labirintos da casa velha do meu avô, bem erguida no século passado e de pé até o dia de hoje.

Todas as manhãs, era eu quem levava o seu almoço amarrado no pano de prato listrado. Ele tinha já seus 90 anos. Eu sentava lá, olhava o buraco no teto de sancas adornadas de videiras enquanto ele mastigava com a gengiva. Trocávamos umas duas ou três frases, ele, tentando ler meus lábios e falando muito alto. Após ao término da refeição, ele embrulhava o prato vazio e preto do resto do caldo de feijão e se punha a palitar os dentes invisíveis no fim da boca. Levantava-se, colocava o chapéu na cabeça e, sem muitas dificuldades, me guiava até o quintal de mangueiras e jabuticabeiras. Lá no fim daquele quintal que parecia infinito corria o rio Itabapoana.

De pé, eu me encontrei, na mesma sala de outrora, a cristaleira de vidro com os mesmos bibelôs e quinquilharias. O mesmo buraco negro de onde as lendas brotavam naquela casa. À minha volta estavam todas as minhas tias e tios já mortos (e como são tantos. Aristides e Dona Maria José tiveram treze filhos e meu pai foi o último a nascer). Os mortos falavam muito e eu só via as saias dos vestidos coloridos das mulheres. Entre elas tagarelava a Sônia, vestida em saia vermelha rodada e estampada de peónias. Sônia é lenda viva entre as irmãs Campos Couto. Ela, ainda menina, caiu da mangueira no quintal (a mesma da minha infância), aterrisou num toco de madeira e aos quinze anos morreu de tétano.

Sônia abriu a porta azul da cozinha e se pós a correr pela rua afora. Atrás dela, montado em uma bicicleta, o guardião dos mortos, uma figura magra, alta e alucinada voava entre os vivos. Eu de longe e sem medo, espiava o alvoroço, afinal eram todos, apesar de mortos, família.

Acordei às pressas, engoli uma xícara de café morno, coloquei o Báu de Espantos dentro da bolsa e fui para o dentista. Lendo o Mário no trem para Manhattan hoje pela manhã, me dei conta pela primeira vez da minha natureza de poeta. Eu olho o mundo ao meu redor e olho o mundo dentro de mim e tudo emfim se transcreve em palavras; como o mundo deve se transcrever em cores para os pintores. O texto me persegue como os fantasmas de Mário e os meus próprios.