sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Exame Benigno em rede nacional

De Bruno Vaks

Aperto o botão para começar, checo o tênis, ajeito a meia e começo a trotar aumentando a velocidade para chegar num nível que agüente o ritmo. Com o fone plugado no aparelho de ultima geração, passo os canais até encontrar algo digno para minha corrida vespertina. Como estou a fim de correr. Paro num canal da TV a cabo onde passava um programa de entrevista americano muito famoso. O programa da Oprah.

Para aqueles que não conhecem (muito poucos acredito eu), esse programa de auditório fala de tudo. Tem sempre uma platéia linda de anônimas americanas beirando os 35 anos, discutindo os mais diferentes temas. O de hoje, para minha alegria (ou quem sabe tristeza), tratava da historia de um homem que iria fazer uma colonoscopia. Para aqueles que não sabem, esse exame é preventivo para a descoberta de câncer no colon. Muitas pessoas morrem deste câncer, muitas vezes letal. Não tenho estatísticas aqui comigo, que reflitam essa minha afirmação, mas me parece um caso sério e que deveria ser exposto sim a grande massa. Sendo a Oprah, uma enorme comunicadora de massa, é só juntar os pontos.

O fato em si que causou estranhamento foi todo o processo a ser desenrolado no programa. Algo impensável ate em um país de primeiro mundo. Primeiro a historia triste, do medo de se fazer esse exame. Caso não saibam, a colonoscopia consiste em um tubo mecânico/robótico que filma todo o colon e intestinos a procura de pólipos malignos que possam prejudicar o ser humano. Ele é introduzido pelo ânus da pessoa e de fora, olhando para uma telinha, o medico realiza o exame, tira pedaço para biopsia e por ai vai. Calma gente, isso tudo passou no programa de TV. Eu ainda não fiz ate o momento.

Pois bem, continuando no programa, mostra esse homem cujo irmão faleceu de câncer, tomando a decisão de fazer também o exame. Ate ai tudo bem. Aí que entra a idealização absurda desses programas de massa. Vemos o homem, arrumando a mala, se despedindo da família, com ar tenso, musica tensa ao fundo. De repente, corta para ele dentro de um avião indo para Nova York fazer o exame. Mostram a marca da companhia aérea e o avião aterrissando. Corta novamente e estamos num quarto belíssimo de hotel aonde o paciente irar repousar para o exame. Corta de novo (quanto corte!) e ele aparece com um vidro de laxante de 500 ml. Ele explica que tem que beber 100 ml a cada dez minutos. Nesse ínterim, quem liga? O medico da Oprah, perguntando como ele está, que ele é muito corajoso, que o pior já passou, Bla bla Bla! Surpreendente o medico ligando para o paciente e acalmando. Igualzinho aqui. A cena chega ao fim, com o homem reclamando que o intestino está preparando algo e para terminar, uma brincadeirinha ao lado da privada, onde ele diz:

-Essa será minha melhor amiga da noite.

Ate agora que saga. Mas ainda não chegou ao fim. No próximo bloco, vemos ele sendo sedado e a operação em si. Não passaram a hora que inserem o objeto no anus dele. O exame é um sucesso, a retirada de pólipos é realizada e o anuncio que o resultado fora negativo é recebido por uma salva de palmas pelos presentes no auditório com o sorriso mais branco e lindo do mundo.

E eu lá correndo, suando, nem sequer olhei há quantos tinha caminhado. Aquela cena me deixou extremamente intrigado com a medida utilizada pelo programa. Ao mesmo tempo de uma forma surreal, eles mostram um exame que tem que ser difundido pelas pessoas de menor renda e menor grau de instrução, como uma oportunidade da pessoa ir a outro estado conhecer a cidade, realizar o exame e aparecer na TV. Seus quinze minutos de fama e não precisa passar três meses confinado numa casa. Fico pensando se as pessoas vão achar que será assim o tratamento. Deveria ter uma legenda explicando que aquilo era meramente ilustrativo sendo utilizado somente pelas classes abastadas da sociedade.

Retomemos o caso para o Brasil, enquanto limpo suor da testa. Tirando meia dúzia de pessoas, o resto da população vai ter que enfrentar longas filas, esperar por um bom tempo, se desvencilhar da maquina burocrática. Depois disso tudo, fazer o exame quando o hospital realizar, senão por conta própria tem de procurar o hospital mais próximo, às vezes a centenas de quilômetros de sua casa para fazer. Ate á surgiu uma nova doença que não foi tratada, um acidente que poderia ser evitado, ou mesmo a falta de oportunidade, pois precisaram trabalhar do que cuidar de si.

Voltando o caso para a América, sai da esteira confiante que a grande parcela dos telespectadores saiu daquela segunda feira à noite, quando passa o programa, mas consciente do poder destrutivo que o câncer pode lhe fazer, e desmistificando o fato do exame ser uma negação a virilidade masculina. Sendo a coragem daquele homem que mostrou seu intestino para milhões de pessoas uma dádiva, mas ganhando um jabazinho para efetuar aquilo tudo. Daqui a pouco ele aparece na Ilha de Caras.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

para nós, os amaldiçoados

Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.

O Outro, Composição: Adriana Calcanhotto / Mário de Sá-Carneiro


Acordei pensando em Sintra, Portugal, nas ruínas de seu castelo anciente. Meus pés ainda se lembram das subidas e descidas de degraus infinitos, passando pela sua única entrada, uma porta pequenina de pedra. A caminhada era através de uma estrada estreita de terra batida até à escadaria à beira da parede. Cada degrau, só mais uma pedra, mas parte essencial do todo, como somos todos, indivíduos invisíveis, elos da sociedade. Do alto do Castelo dos Mouros há de se perder a respiração em êxtase pelo verde e o infinito—liberdade—um mundo belo à frente das retinas. Como toda ruína no alto de um morro, os dias gloriosos ficaram perdidos no tempo. Já não há paredes, os mosaicos decorativos nela, o teto.. Há só o esboço do sido. Um esboço de pé ainda para não esquecer e ser esquecido.

Recentemente assisti uma peça escocesa baseada em entrevistas verídicas sobre a atuação do batalhão do exército "Black Watch" na guerra do Iraque. Toda civilização tem suas guerras e eventualmente depara-se com a própria decadência. Como sempre em história, século após século, meninos viram homens antes do tempo, com armas na mão. No palco do teatro Saint Ann's Warehouse, em Brooklyn, NY, oito deles aprendem a lição, entre ondas de medo e coragem, morte e sonhos. O general da tropa confessa, "somos todos amaldiçoados, na escolha, na falta de opção carregada no sangue, herdada dos pais que herdaram dos avós, por isto viramos soldados." Estes meninos—homens não sabem a razão por estarem em meio de uma guerra (assim como os meninos-soldados filhos das favelas brasileiras). É tudo tradição. Os meninos-soldados não defendem o próprio território, invadem o próximo. Sentam sob o calor escaldante do Oriente Médio à espera de um outro menino, o menino-bomba.

Como artista, eu sou amaldiçoada também. Mais cedo ou mais tarde, seremos todos sacrificados. A minha arte não me defende e sim invade o espaço do outro e perturba o conforto alheio. O artista cria para se salvar, se curar e devolver ao ambiente um cidadão melhor.

Tenho tanta coisa linda pra falar, pra mostrar, há beleza em mim certamente. Entretanto, se tenho que falar do belo, não sei escrever. Escrevo mal. Esqueço. Quem escreve sabe. O artista quer tudo aquilo que não está terminado. Só o esboço lhe interessa. Um mundo belo é um mundo acabado. Há os poemas perfeitos que nascem aleatoriamente. São magníficos mas caem em esquecimento. Estes nascem no momento da ação que o inspira. Todo poeta já vivenciou estar distraído e ver o poema surgir do nada, ditado pela própria voz muda de dentro de si. Por estar distraído, o poeta ouve os versos, mas minutos depois não pode lembrá-los. Este poema é o poema belo. Todos os outros, são frutos do trabalho, do artista artesão, que trabalha na forma, no som, na linguagem, frutos de um ambiente imperfeito. O artista cria através do exercício da doação, da exposição. Não estão distraídos e assim podem se colocar na linha de fogo. Podem ser sacrificados. Revelar um mundo exterior imperfeito para transformá-lo pode ser crime. Revelar o mundo interior do homem, também.

Sim, nós, os artistas, como eles, os meninos soldados, somos amaldiçoados. Nós, os invisíveis, enxergamos este mundo em ruínas e queremos paz, queremos o verde infinito visto do alto do morro. Existirá enfim esta possibilidade, para nós, os amaldiçoados?

Por Simone Couto

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Um Belo Retrato

Por Simone Couto

É fácil retratar o corpo, transformá-lo em um belo retrato. Difícil é desenhar a alma do outro. Há de se ter permissão e raramente quando ela é concedida. Na maior parte do tempo, ao obtê-la, o artista não falha em se envolver e decifrar os mapas invisíveis da alma. Exige tempo e o desejo de abraçar o invisível, o não palpável, aquilo que não é obvio. Para desenhar a alma alheia, há se despir também, deixar para trás a couraça feita de velhos hábitos, de amores routineiros, causas passadas. O desconhecido assusta enquanto que o familiar conforta. Agora, quando o artista desisti e comete um ato falho, qual alma estará o artista traindo? A do outro ou a própria?