domingo, 23 de março de 2008

Para rever e sonhar
Por Aline Yasmin


A memória traz os vivos e os mortos - é uma grande centrífuga que nos forja e pouco resta a fazer – contra e com isso. Os mortos vivos são nossos fantasmas. Creio que há um certo tempo de esquecer e de lembrar. Esquecer para não perder a ternura e lembrar pelo mesmo motivo.
Há exatos 3 meses quando lutava para esquecer encontrei um amigo que não via desde meus 9 anos de idade. Leandro, irmão de Frederico e de Carolina. Nos perdemos no tempo até que novamente nos tocamos. Ficamos ali parados relembrando o olhar infantil no horizonte, corpos escorados pela pedra, oito pés diminutos pendurados numa pequena praia que frequentávamos. Quatro crianças que sonhavam juntas. Frederico com seus olhos verdes folha e Leandro com uma indefectível pinta escura sobre o a maçã rósea do rosto, ambos cabelos pretos que escorriam sobre a pele alva - e nós, as gêmeas. Nos reencontramos 30 anos depois. O tempo congelou naquele espaço. Lembrávamos desse dia. Frederico de um pouco mais. Como um hiato, nossa vida – esse vão que nos distanciou, desapareceu. Fomos sentimento puro. Memória maciça de crianças emocionadas que se abraçaram como se não houvesse nada, como se a dor e as conquistas do passado nada representassem, a ternura nos comoveu, mais do que a nossa vida. Que seja esse tempo, seleto, guardado- feliz, nosso bálsamo, nosso presente mais precioso, um saco de coisas boas - do frescor que cessa enquanto caminhamos na estrada dura. Que seja esse o passado, o lembrar criança, a pureza horizonte, o sorriso espontâneo, pés soltos no ar.

Que enterremos nossos fantasmas, nossos medos, nossos sonhos desfeitos – e façamos outros.


terça-feira, 11 de março de 2008

Amputados
por Aline Yasmin

eram pra ser dois. parte um, parte outro. não eram. eram um corpo só. um pedaço de olho que se integrava numa bacia, dedos perdidos na boca - outra, pele colada pé sobre pé. movimentos que se fundiam tais quais liquidificados. únicos. uníssonos. palavras que se completavam - frases inteiras. o corpo se desintegrou. não o corpo, partes deles - agora dois, deslocados, partes descoladas. a mão que não mais se coloca e os pés completamente tortos - seguem rumos distantes. dizem que se perdem eventualmente e podem ser vistos ziguezagueando madrugadas afora - tentando achar nos escombros o resto do próprio dorso.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Santa Teresa Por Ele e Ela

Por Simone Couto-Versão Revisada)

Ele: Homem não chora. Quem chora é ela, Santa Teresa. Só ela. Eu vi. Eu, perdido entre foliões. O bloco das Carmelitas passando. A Ladeira derramou um rio de lágrimas minutos antes dela chegar. Tanta chuva, tanta dor.

Eu me arrumei todo. Olha que não sou de vaidade. Pensei em colocar a minha melhor roupa e acabei mudando de idéia. Queria encontrá-la com a cara limpa. Não usei brilhantina no cabelo nem minha camisa branca de linho. Aparei de leve a barba. Me enchi de esperança.

O que fiz foi esvaziar a mente. Desmarquei a birita e o jogo de cartas com a turma do Bar do Zé, despachei a empregada e dei-lhe uma gorjeta generosa. Desci e fui até a esquina. Comprei um maço de cigarros. De volta à casa, dispus o pacote e o coloquei na mesa ao lado da cama. Antes de tomar um banho, telefonei para o taxi e pedi que me pegasse às 19:00 horas. “Não posso me atrasar, informe ao motorista,” eu disse à telefonista da agência de taxi.

“Anita não é flor que se cheire”, pensei ao passar pelo o Aterro do Flamengo e ao avistar escassas pétalas de um rosa pálido nos galhos das árvores. Seguimos. As ruas estreitas e as curvas do morro surgiam aos poucos. Aquilo tudo era uma visão familiar. O taxi parou. Fui generoso novamente na segunda gorjeta do dia.

Pisei em Santa Teresa e as primeiras gotas de chuva, quase invisíveis, molharam a linha do bonde, os paralelepípedos disformes, as buganvílias agarradas no muro. Parece que foi ontem quando fugimos da multidão e das serpentinas, para trocarmos beijos extasiados e juras de amor.

19:20, ainda tenho dez minutos. Que fazer com estes dez minutos? Acendi um cigarro. Deixei o tempo passar.

Minha alegria desfaleceu-se aos poucos. O porvir foi assim, eu conto: dose de cachaça descendo quente pela garganta, o pandeiro tocando desafinado, "você manhã de tudo meu, você que cedo entardeceu, Você de quem a vida eu sou, E sem mais eu serei... Você um beijo bom de sal, você de cada tarde vã, Virá sorrindo, de manhã..."

No “Boteco do Mineiro” o músico passou o chapéu. Desta vez fui miserável. Paguei só a conta e economizei na gorjeta. Caminhei rua abaixo por entre os trilhos e confetes. Matutei com os meus botões, “ô mulher ingrata. Vá pro diabo que te carregue.”



Ela: Eu chorei . Derramei um rio de lágrimas. Ele não viu. Também não compreenderia.

Eu me aprontei toda e acabei mudando de idéia. Queria encontrá-lo como realmente sou. Não prendi meus cabelos, não usei batom vermelho. Não vesti aquela fantasia de cigana que ele gostava tanto. Só me preenchi de coragem.

O que fiz foi esvaziar a mente. Desmarquei a manicure das 11:00 horas e liberei a empregada. Fui até a esquina. Comprei um ramalhete de dálias alaranjadas. De volta à casa, dispus uma por uma no vaso e o coloquei na mesa ao lado da cama. Antes de tomar um banho, telefonei para o taxi e pedi que me pegasse às 19:00 horas. “Não posso me atrasar, por favor informe ao motorista,” eu disse à telefonista da agência.

“Osmar é traiçoeiro”, pensei ao passar pelo o Aterro do Flamengo e ao avistar árvores crescendo em solo frágil. Seguimos. As ruas estreitas e as curvas do morro surgiam aos poucos. Aquilo tudo era uma visão familiar. O taxi parou. Paguei o que devia. Desci.

Pisei em Santa Teresa e as primeiras gotas de chuva, quase invisíveis, molharam a linha do bonde, os paralelepípedos disformes, as buganvílias agarradas no muro.

19:10. ainda tenho vinte minutos. Quis acender um cigarro mas não tinha fósforo. Levantei-me e fui embora.

Meu choro ninguém viu. O porvir foi assim, eu conto: Sentei-me no meio-fio, tirei um livro de Freud de dentro da bolsa. Senti-me estúpida lendo Freud em plena terça-feira de carnaval. O abri em uma página qualquer. Li: Quando amam não desejam; e quando desejam, não podem amar. (Cap. IV, II,2).

“Meses sem notícias e agora quer me encontrar? Esquece!”, pensei. Desci a ladeira caminhando com passos tortos por entre os trilhos e confetes. “Todo caso de amor fulminante, mais cedo ou mais tarde passa. Dói mais passa”, suspirei aliviada.

Cinzas, só as da quarta-feira.


sábado, 1 de março de 2008

gira-sol
por Aline Yasmin

hoje me chamaram atenção duas flores no jardim: girassóis. grandes e valentes com suas caras redondas amareladas voltadas para o mar. pareciam felizes. moveram-se durante o dia e procuraram como se poderia esperar, o sol. ele veio confuso, alternadamente brigando com as nuvens. pareciam duas mocinhas singelas contando causos na janela. se eu fosse um pintor - dali, talvez as retratasse ainda melhor do que celebrou
van gogh e as faria certamente duas jovenzinhas cúmplices e desencucadas se fazendo companhia. Não pude deixar de sorrir.