quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Relato do "Imperador"

Por Simone Silveira




Sou um ser andarilho. Não foi nada fácil dizer adeus àquela Ilha—o jardim, às plantas, mais de duzentas fincadas no solo nos últimos três anos. Fica a esperança que as alfazemas sobreviverão mais um ano sem o meu cuidado diário de noventa e oito dias exatos todo o verão. Consegui colher pêssegos da árvore plantada no ano passado. Duas maçãs tímidas ainda amadurecem na macieira. A horta foi minguando aos poucos e meu coração também, afinal sou orgânica. Minhas mãos cavaram três buracos admiráveis, misturaram à areia seca e amarelada, um bom monte de esterco feito de algas marinhas. Lá estão agora, já se enraizando em terra boa, três árvores de folhas picotadas avermelhadas, Japanese Maple. Lindas. Sei que elas crescerão robustas apesar de tanto vento e sal nos galhos e tronco.

Durante a viagem de volta à cidade de Nova Iorque meus olhos só viam a mata. O outono chegou, as folhas secam e amarelam. Paramos em uma cidadezinha histórica. Descrevi e analisei cada jardim—as flores e arbustos, a geografia, a relação destes objetos entre si e o espaço. Meu marido comentou que eu só via as plantas e não a arquitetura tradicional do local. Me calei. Dentro de mim procurei encontrar relação entre o comentário e minha vida. Até onde não estou conseguindo levantar a cabeça, meus olhos e descobrir algo novo, ainda que velho?

Chegar foi desalento. Me desabituei das ruas sujas, dos pombos, da multidão. Estranho entrar no meu apartamento fancy em Nova Iorque. O chão preto e meus tapetes orientais me chocaram, assim como o meu fogão industrial de seis bocas, peça fundamental nas festinhas e saraus. Como acumulei tanta tralha nestes anos todos? Precisarei limpar superfícies, doar o desnecessário. Felizmente o fogão fica. Para sempre gostarei de ter gente na minha casa e de alimentar o outro, mesmo apreciando a minha privacidade.

Coloquei as malas no chão do corredor e a campainha tocou. Tocou algumas vezes. Em meia hora, havia três vizinhas e oito crianças correndo pela casa. O apartamento foi virado ao avesso em questões de segundos. Não me importei, ali nascia uma alegria. Minha ausência fora sentida e o meu retorno esperado. Gosto de gente. Penso ser este gosto um ato recíproco.

Enfim desabei de cansaço. Na cama, senti o cheiro do meu travesseiro, experimentei a sensação familiar do peso do cobertor sobre o corpo. A Ilíada lá, repousada na cabeceira, me esperando. Priam, rei de Tróia, suplicando o corpo do filho morto, Hector, a Aquilles. Este, mesmo corroído de ódio, consegue ainda se comover e devolve o corpo do inimigo. Li mais uma vez este trecho que ao longo dos anos sempre me tocou pela profunda capacidade do homem de entender a dor alheia. Apaziguar o próprio ódio nas entranhas. Do meu quarto, dos meus livros, da casa não, tive saudades. Dormi bem e em paz.

No dia seguinte, deixei o Brooklyn e fui à Manhattan. Subway lotado—gente, carrinho, barulhos, sacolas, lixo. Para qualquer um, menos para mim, é tão fácil andar pelas suas ruas planejadas em grade, como o velho conhecido jogo da velha. Já revirei os subúrbios cariocas divulgando teatro, já desvendei os mistérios dos becos e ruelas de Lisboa com êxito. Em Manhattan, eu me perco por ser tão exata. Andei muito, por ruas longas, contei quarteirões extras. Quem sabe mais do que pensei ter caminhado?

Os pés calejavam. No campo, eles são libertos de qualquer sapato. Porém, neste exato instante, é aqui onde habito. Existo.

(a palavra Imperador no título é uma referência à carta número quatro do jogo de tarô que simboliza o poder, a afirmação, a iniciação, firmeza e consistência)


Nenhum comentário: