quinta-feira, 26 de julho de 2007

ESPANTO E CARNE DE BOI

De Aline Yasmin

Eu não como carne vermelha desde a minha tenra infância. Não sei bem como tudo começou, mas sei que aos 8 já recusava com ares de pânico qualquer bife descoberto em meu prato. Isso não foi muito fácil pra mim considerando que na década de 70, com mãe de 40 – cristã do interior – não comer carne vermelha era quase blasfêmia. Isso se agravava pelo fato de minha irmã gêmea univitelina Elian se fartar num bom fígado, o que era sempre motivo de comparações: “ - Se sua irmã come, e é igualzinha a você…”

Morávamos numa casa com muro alto em uma de suas divisas e vários gatos de rua nos visitavam enfileirados desfilando sobre ele – regularmente. Eu era o deleite da galera. Carne no almoço e no jantar para os felinos mais espertos e vorazes. E tanto fiz que consegui me libertar daquela tortura ao convencer minha genitora zelosa de que poderia comer frango e peixe e manter as qualidades nutricionais por meio de outros alimentos - sem passar por aquele sofrimento cotidiano. Com a eloquência de uma aquariana curiosa no ápice do movimento contestatório juvenil (tudo redundância) e munida de argumentos infalíveis, mantive minha dieta ideológica.

Aos 16 em visita a uma tia da roça, deparei-me com outro paradigma ao assistir de perto a morte de uma galinha, que visceralmente corria sem cabeça tentando se libertar de si mesma (pensei) pelo quintal pisoteando em titicas próprias e irmãs. Não sei se é contemporâneo, mas Freddy Krueger - personagem da cine-série Pesadelo em Elm Street e o célebre Jason de Sexta-Feira 13, épicos 80 – situados temporalmente na ocasião - pareceram-me fichinha diante daquela simpática tiazinha (não a confundam com aquela mascarada 90) com seu facão afiado e expressão serena.

A cena posterior foi ainda pior com todos abraçados e felizes – como diz minha comadre lírica Rowena – ao deliciarem-se naquele molho pardo. Eu – óbvio, branca. Volto-me aos 08 anos. Restaram os suculentos alfaces frescos, a couve refogada e o feijão mulatinho - sem culpa nenhuma. Áh, sim e um oceano inteiro de peixes e frutos do mar.

Tempo passado e cá estou numa estrada extensa a caminho do interior de uma cidade conhecida também por um famoso frigorífico. A estrada é de chão e com muitas curvas, o que me impede de cortar qualquer veículo por uma pequena extensão de 50 quilômetros aproximadamente. Curvas fechadas e comboios intermináveis. Põe-se a minha frente para meu desespero, um caminhão lotado de boi, boizinhos coitados, socados em uma carroceria. Lá deveriam ter pelo menos 20, 30 – não sei. Lembrei-me de um vídeo no YouTube – "Terráqueos". Lembrei-me também da teoria do professor Fernando Pacheco do "Homem Ecológico", na sequência, da alma sensitiva de Aristóteles, da fúria de um boi fugindo do matadouro na eminência de sua morte.

Os boizinhos tentavam se amparar – instintivamente – uns sobre os outros, a cada curva. Eu pensava na entrega. Da mercadoria e da própria entrega. Por que ainda lutam para manterem-se de pé se estão a caminho da morte?

A estrada era longa e as curvas fechadas - como já havia dito, me fizeram refletir sobre caminhos e resignações, liberdade e opções. Fez-me pensar também o rebanho de bois e vacas resignado.

Ocorreu-me Sartre que falou de liberdade, embora não tenha pensado nos bois.

Ocorre-me a humanidade, Nietzsche e sua boiada.

A buzina vizinha soa como um berrante.

Também sigo para o abatedouro. A rotina me espera: máquina de moer carne humana – diria Caê.

Tropeço, escoro-me nas curvas em paredes imaginárias, acredito na estrada e mantenho-me de pé. Tal qual os bois, tais quais humanos.

2 comentários:

Aline Yasmin, Bruno Vaks e Simone Silveira disse...

muito bem costurado, Aline—O cotidiano e as verdades universais sobre a fragilidade da vida e do animal, incluindo o bicho homem. Vc fez referências excelentes de vivências pessoais e crenças dos grandes pensadores da humanidade. Divido contigo muitas imagens semelhantes pois viemos do mesmo estado. Estou lendo a autobiografia do Boal: "Hamlet e o Filho do Padeiro". No segundo capítulo ele também faz uma descrição vívida sobre a morte de seus animais da infância para a alimentação doméstica, incluindo uma fantástica cena sobre a morte de uma galinha. Vale a pena conferir.Nnao teve como não associar. Vc e Boal, quem diria???

Bjs,
Simone

ALINE YASMIN disse...

querida linda...pois é...as galinhas andam povoando os sonhos alheios...ou pesadelos. Muita coisa pode parecer alheia e necessariamente não ser. Acho que essa é a relação fundamental que crio entre aquele que está de passeio e aquele que nem aí está.

bj's