quinta-feira, 19 de julho de 2007

Memória anunciada

De Bruno Vaks


Outro dia, não muito tempo atrás, estava esperando o elevador para uma consulta médica quando me deparei com um cartaz de aviso. Ao lado da porta do elevador, havia um quadro de avisos e informações sobre saúde, já que estava num prédio de consultórios e exames. Me chamou a atenção a divulgação de uma palestra que ia ser ministrada não sei quando mas o tema era interessante. Li aquilo junto com o ponto de interrogação que vinha ao lado: “Se Deus é amor, porque sofremos tanto?”. Fui para minha consulta e fiquei com essa frase na cabeça. Continuei com a vida e ontem ela me retornou com força total.

Colidiu com a sensação de impotência que sofri quando vi na televisão, a extensa cobertura sobre a queda de um avião super lotado em São Paulo. Estava num lugar aonde só passavam imagens, mas não som. Fiquei tentando decifrar o que os repórteres diziam nas poucas vezes que apareciam, e isso me agoniava. Sabia que era em São Paulo porque muitas vezes passei por lá. Um amigo meu mora naquela direção. Tenho uma relação complacente com São Paulo, por tudo que vivi por lá numa época não tão remota. Só fui saber da tragédia, realmente em casa quando soube dos mais de duzentos passageiros vindos de Porto Alegre. Cidade que também tenho uma relação de amor e raiva, mais amor diga-se de passagem, por tudo que vivi por lá num passado também não tão remoto (mas vamos deixar esse assunto para uma outra oportunidade). Me identifiquei com todos os sotaques que estavam presentes aquele avião.

Veio a minha cabeça as sensações que todas aquelas pessoas passaram em poucos segundos de vida. Tirando os solavancos de turbulência alheias, tudo estava na perfeita harmonia. De repente, sei lá se foi erro humano, erro técnico, erro político, não quero entrar nesta alçada porque minha onda não é essa, BUM. Já tem bastante gente criticando e que entende do assunto bem mais do que eu. Quero somente visualizar suas ultimas sensações, seus últimos sentimentos e seus últimos amores. Amores que nesse momento foram despedaçados e esvaziados repentinamente pela tragédia. Sempre imaginamos o avião despencando milhares de metros sem controle, as pessoas gritando sem parar, desesperadas, com máscaras de oxigênio aparecendo, prontas para o pior, mas ainda com o pensamento nos entes queridos, nas coisas boas que já fizeram, nas coisas que ainda pretendiam fazer, no beijo que deixaram de dar e do sorriso que passou batido para a morena estonteante.

Na terça-feira não foi assim. Estavam praticamente no solo paulistano quando tudo aconteceu. Imagino que não tiveram tempo de pensar em nada, simplesmente sumiram. A escuridão veio à tona. Aí veio um pensamento meu: Será que essas pessoas sofreram muito? Não pensem que estou mórbido não! Se elas não sofreram tanto, ou não sofreram, Deus foi conivente. Todas eram amadas por ele, segundo o tema da palestra naquele centro médico. Ele foi amor à vida inteira para essas pessoas, porque no momento final não sofreram (-quero enfatizar que isso é simplesmente uma hipótese, ok?). Será que muitos desses estavam apaixonados pela vida, por suas mulheres, seus homens, seus filhos? Acredito que sim. Não vou relevar que também teriam pessoas tristes por lá. Isso é bem possível de acontecer. Mas se Deus é amor, É luz, É a redenção como dizem? Buscamos nele o conforto, o bem estar. Espero que ele tenha sido bondoso com essas pessoas ao longo do tempo de vida delas. Espero que elas tenham aproveitado o máximo, os pôres do sol, os espetos corridos, os chimarrões e o “lagartear” no Brique. Da mesma forma, que os outros possam ter aproveitado as macarronadas do Bexiga, os trânsitos caóticos no final de tarde, o pôr do sol enfumaçado e a diversidade de seus habitantes, nascidos lá ou não.

Não tenho idéia de como encarar a morte, se com um simples “olá, chegou a minha hora” ou até um “Você por aqui?”. E nem sei como essas pessoas que sumiram ontem sabiam. Mas quero ter a certeza que o amor que elas sentiam, foi o mesmo que eu senti quando me apaixonei pela primeira vez, quando um sorriso me muda o astral, ou quando o sol se põe sobre o morro perto da minha casa. Quero que elas descansem em paz, e me solidarizo com suas famílias, num horror jamais imaginado, mas sofrido. Gostaríamos que isso não acontecesse nunca mais, como outras milhares de coisas que acontecem diariamente.

Por isso não participei da palestra e discordo da pergunta feita pelo possível palestrante. Deus não é amor. Eu nem sei lá o que é deus. Nem sei bem porque as coisas acontecem, porque estamos bem e outra hora estamos mal. Mas temos que seguir em frente. Drummond disse que a dor é inevitável, o sofrimento é opcional. Ok? Para muitos isso é bastante plausível. Para outros, o sofrimento também é inevitável para o crescimento, para você conhecer o amor, para você conhecer a vida. Pena que seja assim o andar da carruagem. Resignado, me despeço com um grito silencioso para aqueles que viveram o amor, que viveram suas vidas e que naquele começo de noite não sofreram.

3 comentários:

Simone Couto disse...

Bruno, o título é excelente, assim como toda as suas especulações sobre a vida e sentimentos das pessoas vítimas da tragédia. Abriu o blog com letras de ouro.

ALINE YASMIN disse...

Bruno,

Tudo isso me tocou muito também. Pra ser sincera, estou tocada ainda. Por incrível que pareça, escrevi sobre o vôo com pensamentos comuns. Acredito que olhar para a vida desta forma é o que nos aproxima. Adorei. Lindo, reflexivo... um beijo grande e parabéns.

Bruno Vaks disse...

Thank you ladies.