sexta-feira, 20 de julho de 2007

PAN’ES ET CIRCENSES

PAN’ES ET CIRCENSES
De Aline Yasmin

Desde que deixei as obrigações publicitárias que me obrigavam a acompanhar o conteúdo televisivo para entender o direcionamento da mídia de massa, não tenho mais o hábito de ter como off um áudio da programação em minha rotina. Assim, a qualquer sinal de desocupação, ocupo-me com pilhas de livros que me esperam silenciosas na cabeceira da cama – diariamente.

Não reconheço a nova geração de atores ou a programação atual e fico completamente alheia a nomes de novelas ou jargões eventuais lançados pelo eletrônico caleidoscópio RGB. Sendo assim foi totalmente por acaso que minha televisão estava ligada e mais acaso ainda - eu estar em casa, quando uma sinapse – reflexo de memória remota – trouxe súbito a trilha do plantão da telinha que gritava na sala para os ouvidos atentos dos meninos em férias.
Bem, ruído de plantão é aquele acompanhado de intuição ruim. Sabe-se infelizmente que na maioria das vezes o assunto pode ser bom para audiência, mas não faz bem às almas mais sensíveis.

Despertei-me do transe literário e quase instantaneamente apossei-me de uma curiosidade infantil ao pular da cama para o sofá da sala ao ouvir a notícia que viria.

O telefone toca e o vizinho quer saber se tenho açúcar para emprestar.

_ Não…! Sabe que não tenho açúcar em casa?! Penso na minha prepotência em querer doutrinar as pessoas ao usar discursos contra a velha cana refinada e que preciso entrar em forma mesmo não comendo açúcar, o que é inevitável ao olhar para os corpos sarados expostos no Pan.

Na TV o apresentador parece meio assustado, com olhos arregalados. Imagens alternadas e confusas mostram rastros de fogo. A cobertura é ao vivo e ele tenta articular uma conversa com o repórter local para entender a situação. Pane no áudio. Ele avisa que volta mais tarde para maiores detalhes sobre a tragédia com o vôo 3054 da TAM em São Paulo. Fala de um incêndio no aeroporto do Rio e uma voz apressada na sala, sentencia: “

- …terrorismo, quer ver?!”.

Entra uma imagem flamulante - azul, verde e amarela. Atletas cantam o hino nacional. – “Hoje foi um festival de hino brasileiro” - conta feliz a repórter rente ao pódio. O vencedor levanta a medalha e a beija. A platéia agradece feliz por seu empenho. Lá, todos se orgulham ser brasileiros.

O estúdio volta e anuncia a tragédia. “- Não se sabe ainda quantos são”- estão ao vivo – “As pessoas certamente estão mortas”, anuncia o repórter via satélite. Não é possível prever. - Ao vivo - meu pensamento se agoniza impotente. O fogo aumenta. Lá, também há aglomeração. Não há rostos felizes. As cores: matizes azuis e vermelhas flamejantes misturadas ao chumbo.

Piscina. O jovem nadador chega na frente. Seu corpo desliza sobre a água para alcançar a vitória. A água da piscina é azul, fluída e refrescante com fluxo contínuo longitudinal.

A cena volta a alcançar o prédio, a avenida imensa e as casas do entorno. Meus olhos se fixam atônitos. Mais uma vez, simultânea a câmera capta a imagem da água de uma plástica composta. Essa é espessa, ávida e se distribui em leque tentando alcançar 360 graus.

Fico pálida ao pensar novamente que estamos ao vivo. Essa imagem me apavora. Mais ainda, de não saber se eles estão vivos. E se agora - enquanto assistimos - eles ainda estiverem lutando? Assistimos ao vivo seus óbitos? Quase posso ouvir a dor. As imagens se multiplicam. A cobertura é completa. Eles estão em todos os lugares. Buscam as famílias, os passantes, os vizinhos, a moça do táxi quase atingido, o motorista, uma voz distorcida do piloto solidário querendo dar sua versão – incógnito. Temos uma visão de cima, de todos os lados e ainda uma projeção espacial forçando um laudo ou explicando uma possível pane.

Intervalo. Os comerciais são de uma beleza irretocável. Quase me esqueço que estou triste.

Também sinto dor agora.

Tenho certeza que não conheço qualquer pessoa naquele vôo. Também não conheço Porto Alegre, portanto minha relação de afeto específica não existe. O que existe é a dimensão humana. Da ética - solidária – o que me remete ao filósofo medieval Agostinho, quando penso no amor universal. Acredito nele, tanto quanto no particular. Lembro-me de ter respondido sobre isso ao meu professor de Ética - Delboni.

A moça de sorriso emblemático volta com seu uniforme cinza e amarelo. Ela está feliz com os resultados do Brasil e precisa comunicar. Convida a mãe para a entrevista que grita pela vitória do filho e admite - rouca - que com um pouco de gengibre recupera a voz para o dia seguinte.

A torcida grita enfurecida. Os oponentes perderam. Alguns choram. O ginásio está lotado.

A avenida interditada abriga curiosos. O circo pega fogo. A cidade está em silêncio e espera – é o que dizem.

A TV tem pressa e procura pelos mortos.

Os anunciantes agradecem.

Eu assisto aflita. O silêncio e a torcida.

Outros tantos milhões pedem pão e circo nessa arena romana. - PANEM ET CIRCENSES !, gritam.

A TV - sacia.

3 comentários:

Aline Yasmin, Bruno Vaks e Simone Silveira disse...

Aline, textualmente, usar a bipolaridade do Pan com o desatre com o avião da TAM em Sampa foi uma escolha brilhante. Gosto das suas frases curtas, de quem está atenta e não quer o desperdício. Pão e circo, a grande frase já clichè se reinventa na sua voz e escrita, se apresenta com força nova e autêntica pois é uma observação real de uma situação absurda em que o nosso país viveu na semana passada. Já estamos a colher as migalhas e a relaxar os maxilares? E a mudança, quando vem? Quando o brasileiro se sentirá seguro em seu próprio Estado? Esta é uma pergunta que não se cala.

Aline Yasmin, Bruno Vaks e Simone Silveira disse...

Assim como o texto do Bruno, o seu tb me tocou muito. Estamos todos de luto. A falha daquele avião realmente é uma metáfora ao sistema de uma nação inteira—Brasil, que falha em proteger seu cidadão na íntegra.

ALINE YASMIN disse...

meus amigos recentes de longa data...que bom compartilhar nossos pensamentos. sei que estamos juntos aqui por motivos especiais...bj's.

ayasmin