sábado, 25 de agosto de 2007

Terminais e Sonhos Desativados

De Aline Yasmim

Acelero. Sempre estou com pressa. O trânsito da cidade anda infernal em meio a políticas públicas pré eleitorais – estratégia do tipo cava buracos para inaugurar no último ano de mandato. A cidade de Vitória é uma ilha – poluída – com duas pistas principais. A que margeia o mar e sua paralela. As vicinais nem se pode considerar vias de acesso, comprometidas com bifurcações incalculáveis. Estamos num beco sem saída.

O volume de estrangeiro é vigoroso e chega curioso todos os dias – migrantes e imigrantes rumo a terra do ouro negro. É certo que nossa cidadela vai tomando ares de cidade grande e com ela, o ônus e o bônus. Tenho pensado na contabilidade dessa simetria e estou convicta de que o ônus é maior e aponta seus vértices para nós residentes eufóricos por promessas e oportunidades.

Outro dia, em meio a mais uma produção pública, fui abordada por um jovem senhor com camisa estampada a passeio numa bicicleta azul. Eu falava entusiasmadamente ao celular e não pude entendê-lo até sua terceira fala, compreendida simplesmente pelo gesto certeiro da arma em punho. O tão inocente senhor vocifera: “- Passa o Celular”. Eu, imersa nos meus problemas habituais, só fui entender o tão insistente assunto quando o trabuco metálico mirou em minha direção.

– O CELULAR! dizia o tal homem apressado.

Com sorte e a bolsa no carro, acatei solícita e de cabeça baixa - entregando-lhe o objeto e salvando todo o resto, inclusive a mim mesma.

Dia semelhante há aproximadamente um ano quando saí em disparada com Caê, pra fugir de um provável sequestro relâmpago. O mesmo gesto, o mesmo olhar e o brilho metálico 38 num domingo sorridente por volta do meio-dia.

Existe ódio no olhar dessas pessoas. Confesso que sempre procuro entender o Eu que fez por merecer. O Eu – outrem. O Eu, que não sou eu. Sou a injustiça de uma vida contraponta, da qual participo e compactuo até onde não quero, mas que nem sempre posso refutar. Faço parte da minha vida e ponto. Faço parte da vida dessas pessoas também. Não tenho como negar. O ódio me entristece e desampara.

Paro e tento entender o que está acontecendo, mas preciso estar em movimento. Não tenho onde parar, nem pra apreciar o dia que está de fato bonito – visto de um mirante da nossa baia de Vitória. O mar azul (que engana) lambe as costas da cidade. A cidade é bela e seduz. Vejo claramente a metáfora da mocinha Vitória que está crescendo – bonita e perigosa, do tipo vilã das novelas globais.

O carro corre e me deparo com a estupenda igreja evangélica para 10.000 pessoas instalada em tempo recorde na via continente de um bairro privilegiado. Aliás na Avenida N. Sra. Da Penha (supeito por precaução, a conveniente abreviação do endereço para Av. Reta da Penha – outro nome possível). Parece-me pelo porte e pela velocidade da obra, que também traz sinal dos tempos. Estamos de fato crescendo – se é que isso possa parecer desenvolvimento.
"A religião é o ópio do povo", dizia Karl Marx. Seria essa lógica então?
Enquanto cresce a violência, a certeza da finitude, a falta de espaço, cresce o mercado da fé e a promessa da eternidade? Conjecturas instantâneas.

Passo pela beira-mar. Nela, dois pontos abandonados há tempos de um terminal aquaviário - ignorados. Vivemos numa ilha, logo também deveríamos usar barcos – silogizo. Não é possível ainda entender o engarrafamento que se segue, interminável. Calculo que em apenas 05 minutos percorreríamos o que de carro ainda fazemos em uma hora, e de ônibus - o dobro. Diariamente milhares de pessoas circulam enjauladas em coletivos desumanos em longos trajetos desnecessários.

A cidade é portuária e carros desembocam vertiginosamente em containers gigantescos. Não temos ciclovias, as calçadas estão depredadas e uma perspectiva vitoriosa de metrô, nem de perto parece viável.
É o caos urbano – fruto do ônus que já mencionara.
A cidade cresce - na promessa do petróleo. Os coronéis se fortalecem e a panela de pressão está em pleno vigor. Nela, todos fervem de pavor, exceto os que preparam a mesa - famintos.

Observo. Faço discursos animados. Outro dia ouvi que não deveria dizê-lo para manter minha relação política. Nem quis pensar sobre isso. Minha voz é minha soberania, afirmo.

Olho para os vizinhos de trânsito e eles estão com expressões cansadas. Eu danço solitária no banco apertado - INXS pra minimizar a exaustão. Os ônibus carregam sonhos amontoados, mexem seus corpos apenas em curvas. Passam pelo terminal desativado e não o vê, esqueceram-se das promessas do metrô, guardam suas bicicletas em casa – por segurança – reservadas àqueles que não tem medo e nem pensam em ciclovia. Também não observam o teatro em frente, prestes a ser demolido enquanto artistas suplicam agonizantes. Cultura não enche barriga – diz o velho político.

E as pessoas adormecem em pé no trajeto até suas casas ou comemoram aniversário, já que ali passam grande parte dos seus dias. No ônibus não tem música. Tem grito de menino pedindo gorjeta, tem idoso doente e gente caindo na roleta.

Fraternité, Igualité e Liberté. Tento buscar algum princípio na humanidade que tenha dado certo, nem Marxismo, nem ideal cartesiano burguês, nem suecos suicidas.

Sem utopia ou distopia, a massa apenas espera e nem sabe o quê. Eles não se lembram. Não pedem nada ou são ignorados.

Resta o ópio como solução. que cada vez mais enche igrejas (in) perfeitas.

2 comentários:

Aline Yasmin, Bruno Vaks e Simone Silveira disse...

Na miséria de hoje, dentro do Brasil, não é o crime o ópio dos agressores? Já não fazem só pela barriga que dói, fazem também pelo prazer e pelo hábito. Sinto muito por ter passado por esta experiência do assalto. Realidade comum a todos nós brasileiros. Tanta vulnerabilidade... Eu te senti, tinha estas sensações quando morava no Rio, a cidade lotade, vozes, multidão, violência, vc acha que vai desmaiar. Hoje já dão nome aos bois, todo mundo gosta de falar em "ataques de pânico". O pânico da cidade que está agora enraizada no seu cidadão. E o brasileiro que pode, tenta se curar com pílulas anti-ansiedade enquanto o problema mais continua crescendo fora dele. Quando haverá uma mobilização geral? É necessária, certamente.

Caê Guimarães disse...

Eu sou bastante suspeito para falar da pena lírica e ácida da minha mulher. Suas crônicas surpreendem pela melodia, pelo jogo de imagens e aliterações, por uma mirada muito acurada e apurada sobre a vida como ela é, e por outra mirada, originada nos mesmos olhos, que nos leva a ver, por baixo da pele de tanta realidade, a fantasia, o sonho, o ensaio de vôo. Tuas letras dançam Aline, como você dançou um dia em pontas, cantam como você ainda canta e encanta, e ainda apontam, dedo em riste, alegre ou triste, para o novo passo que todos precisamos dar.

Quanto mais te admiro mais te quero, e vice-versa, e vísceras e festas.

Seu,

Caê.