quinta-feira, 15 de novembro de 2007

para nós, os amaldiçoados

Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.

O Outro, Composição: Adriana Calcanhotto / Mário de Sá-Carneiro


Acordei pensando em Sintra, Portugal, nas ruínas de seu castelo anciente. Meus pés ainda se lembram das subidas e descidas de degraus infinitos, passando pela sua única entrada, uma porta pequenina de pedra. A caminhada era através de uma estrada estreita de terra batida até à escadaria à beira da parede. Cada degrau, só mais uma pedra, mas parte essencial do todo, como somos todos, indivíduos invisíveis, elos da sociedade. Do alto do Castelo dos Mouros há de se perder a respiração em êxtase pelo verde e o infinito—liberdade—um mundo belo à frente das retinas. Como toda ruína no alto de um morro, os dias gloriosos ficaram perdidos no tempo. Já não há paredes, os mosaicos decorativos nela, o teto.. Há só o esboço do sido. Um esboço de pé ainda para não esquecer e ser esquecido.

Recentemente assisti uma peça escocesa baseada em entrevistas verídicas sobre a atuação do batalhão do exército "Black Watch" na guerra do Iraque. Toda civilização tem suas guerras e eventualmente depara-se com a própria decadência. Como sempre em história, século após século, meninos viram homens antes do tempo, com armas na mão. No palco do teatro Saint Ann's Warehouse, em Brooklyn, NY, oito deles aprendem a lição, entre ondas de medo e coragem, morte e sonhos. O general da tropa confessa, "somos todos amaldiçoados, na escolha, na falta de opção carregada no sangue, herdada dos pais que herdaram dos avós, por isto viramos soldados." Estes meninos—homens não sabem a razão por estarem em meio de uma guerra (assim como os meninos-soldados filhos das favelas brasileiras). É tudo tradição. Os meninos-soldados não defendem o próprio território, invadem o próximo. Sentam sob o calor escaldante do Oriente Médio à espera de um outro menino, o menino-bomba.

Como artista, eu sou amaldiçoada também. Mais cedo ou mais tarde, seremos todos sacrificados. A minha arte não me defende e sim invade o espaço do outro e perturba o conforto alheio. O artista cria para se salvar, se curar e devolver ao ambiente um cidadão melhor.

Tenho tanta coisa linda pra falar, pra mostrar, há beleza em mim certamente. Entretanto, se tenho que falar do belo, não sei escrever. Escrevo mal. Esqueço. Quem escreve sabe. O artista quer tudo aquilo que não está terminado. Só o esboço lhe interessa. Um mundo belo é um mundo acabado. Há os poemas perfeitos que nascem aleatoriamente. São magníficos mas caem em esquecimento. Estes nascem no momento da ação que o inspira. Todo poeta já vivenciou estar distraído e ver o poema surgir do nada, ditado pela própria voz muda de dentro de si. Por estar distraído, o poeta ouve os versos, mas minutos depois não pode lembrá-los. Este poema é o poema belo. Todos os outros, são frutos do trabalho, do artista artesão, que trabalha na forma, no som, na linguagem, frutos de um ambiente imperfeito. O artista cria através do exercício da doação, da exposição. Não estão distraídos e assim podem se colocar na linha de fogo. Podem ser sacrificados. Revelar um mundo exterior imperfeito para transformá-lo pode ser crime. Revelar o mundo interior do homem, também.

Sim, nós, os artistas, como eles, os meninos soldados, somos amaldiçoados. Nós, os invisíveis, enxergamos este mundo em ruínas e queremos paz, queremos o verde infinito visto do alto do morro. Existirá enfim esta possibilidade, para nós, os amaldiçoados?

Por Simone Couto

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