sábado, 21 de julho de 2007

O Elemento Surpresa

de Simone Silveira


Ainda é possível viver no mundo de hoje sem um telefone e ainda assim sentir-se conectado com o outro?

Há três semanas atrás estava eu presente em Paraty no Festival Literário Internacional (FLIP)—fazendo oficina de crônica, assistindo palestras de autores do mundo todo, incluindo Amos Oz, um dos grandes escritores do nosso tempo, lendo para as crianças pelas manhãs na flipinha e pela noite, conhecendo gente e batendo papo regado à melhor cachaça nacional.

Em um cenário destes quem se lembrará de recarregar a bateria do celular às três, quatro, cinco da manhã? Certamente não eu. Além do mais, havia somente duas tomadas para suportar a parafernália eletrônica dos meus três companheiros de quarto de hotel—computadores, câmeras, fones, I-pods.

No segundo dia o marido reclamou:—Você não me liga, sumiu. Você é a minha mulher...” Para solucionar o problema, dei um jeitinho brasileiro, já que os orelhões da cidade, assim como os banheiros públicos se tornaram inacessíveis. Passei a usar o celular alheio, me sentindo assim meio canalha como filando o cigarro do outro. Meu marido se confortou e eu também.

Fim do festival e de volta à casa, mala desfeita, noto a falta do carregador do bendito celular. “—sumiu, sumiu lá no hotel”, anunciei. Podia ser pior, pensei, afinal no ano passado, foi a vez do celular desaparecer no vôo entre São Paulo e Nova Iorque. Quem me conhece bem deve ter pensado que o ato foi proposital. afinal, nas minhas obsessões, o medo de falar no aparelho, herdado com orgulho do meu pai Jurandir, rola através dos anos sem melhoria.

Ironicamente, minha casa da infância, na pequena cidade de Bom Jesus do Norte, no Espírito Santo, foi a primeira da rua Cândido Peralva a ter um telefone. Minha mãe era uma visionária. Acreditava no progresso. Era ela parte do “country club” local e encomendava discos do Rio de Janeiro. Assim eu cresci ouvindo a Gal Costa. Meu pai, na contra-mão, era fazendeiro negociante, fazia as contas matemáticas na cabeça, não confiava nem nas calculadoras.

O telefone tocava muito. Tocava para todo mundo na rua Cândido Peralva. “—Pode chamar a Dorinha, por favor?”, dizia voz. “— Tá. Liga de novo daqui a dez minutinhos.”, dizia aquele lá de casa que pegava o gancho primeiro. E assim, cresci sabendo da vida privada de todo o bairro.

Na adolescência, morando então no Rio de Janeiro, minha mãe resolveu colocar cadeado no telefone para evitar, segundo ela, maiores gastos e também os telefonemas de possíveis pretendentes a suas três filhas. Eu, magrela e feia, não recebia flores muito menos chamadas telefônicas. O amor chegou mesmo pela primeira vez quase lá pelos meus dezoito anos e eu não precisei do telefone. O futuro geologista morava a poucos quarteirões da minha casa na Tijuca. Minhas tardes colegiais eram preenchidas na companhia da família Filgueira, com direito a bolo de laranja e prosa com a sogra, dona de casa excelente. Pela noite, o namoro era no sofá entre as duas irmãs, ou furtivamente, sentada no meio-fio daquela vila tijucana.

Ontem estava dirigindo por uma estrada de terra batida. À frente, um caminhão de brita deixava um rastro de pedras caídas. Pensei que a minha vida sem celular durante os últimos dias tem sido um pouco assim. Eu não ligo antes para os lugares, apareço no mercado e pergunto se lá se vende sementes de grama. Holly Bellebueno, uma amiga, resolve me visitar pois não respondo às suas mensagens acumulando-se na minha caixa postal (o recarredor encomendado na semana passada ainda não chegou). Tomamos limonada fresca e falamos de literatura. Eu retribuo sua visita com outra inesperada.

Tenho surpreendido e tenho sido surpreendia pelo outro. Meus dias acontecem como aquelas pedras que caem aleatórias pelo caminho.

2 comentários:

Lilian Moreira disse...

Como sempre... poetica. :)

Simone Couto disse...

Lili,amiga e leitora assídua,

obrigada pela visita e pelo carinho.

Bjs,
Simone