sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Sobre os Filhos e as Pedras

Por Simone Silveira

Criar filho é semelhante ao ato de jogar a pedra na água no intuito de fazê-la derrapar, ou na melhor da hipótese, saltar graciosamente na superfície cristalina afim de que conquiste o infinito.

A pedra é escolhida ao acaso, pois elas estão lá soltas no mundo—rua, beira do rio, floresta. Mundo este que não existe até que nos damos conta dele. Agora, o mundo uma vez formado, nos presenteia com seus elementos minerais, diria mesmo ancestrais. É preciso que admiremos a grandeza da sua extensa existência. Assim, é possível tratá-lo com maior dignidade, já que, nos últimos tempos, temos coniventemente ignorado sua fragilidade e contribuído para a sua devastação.

Entre tantas pedras, há de se escolher uma com a forma plana e de preferência, arredondada. Há sempre a dúvida cruel se a eleita entre tantas é perfeita o suficiente para o jogo. Neste caso, e em quase todos na vida, uma escolha, é realmente a falta de escolha, pois já nos acostumamos a carregar no peito e na cabeça, idéias pré-definidas. Assim se passa quando se tem um filho. Bem no fundo, na hora do nascimento, a dor latente, a bacia dilatando, não importa ser a criança homem ou mulher. É imprescindível que seja saudável. Somos todos animais. Muitas mulheres como eu, dividem a mesma experiência de contar os dedos dos pés e das mãos do bebê nos primeiros segundos de vida dele. Essencial mesmo é que ele nasça. Ponto. Conheço quem pariu uma criança morta. Esta dor eu jamais desejo ao meu semelhante. Conheço uma mulher que pariu um filho doente. Ela é o meu melhor exemplo de mãe—paciência infinita, dedicação integral sem espera de retorno, amor incondicional.

Uma vez a pedra na mão, as outras deixam de existir, assim também se passa com os filhos. Quando miramos a sua fisionomia pela primeira vez, é como se já o conhecêssemos por toda a eternidade. Não há esforço. Esta familiaridade é instinto. Depois do reconhecimento, é hora de estudar a melhor forma de jogá-la na água para que salte em intervalos regulares. O intuito é que ela vá longe, muito longe. O corpo e as mãos se curvam em um ângulo específico, afim de que ao lançar a pedra, ela perfure o ar rodopiando em círculos magistrais, seguidos de um arco perfeito rumo à água. Sem quase tocar a superfície e vencendo a tendência natural de submergir-se, a pedra finalmente derrapa harmoniosamente sobre ela. Esta arte, aparentemente tão simples é como a arte de se criar um filho. Sua complexidade vem com a primeira febre, a primeira briga na escola, o primeiro palavrão, a primeira dor, o primeiro amor e outros primeiros que nos pegam despreparados e nos põem tão confusos como nossos filhos. Bem no fundo, somos todos marinheiros de primeira viagem, inclusive aqueles, como eu, que se julgam frutos de uma geração esclarecida —tudo pelo diálogo, e que defendem o conceito de ser a criança dotada de direitos e deveres como qualquer outro indivíduo. Na hora do aperto, há de se consultar os livros. To Listen to a Child, do Doutor Brazeton tem sido de suma importância como outros dele. A sogra também é elixir com toda a sua experiência de vida. As vizinhas, e até o porteiro tem o seu lugar nesta difícil arte.

Maternidade é certamente um ato natural, assim como muitos, por exemplo, comer de garfo e faca, porém é necessário a aprendizagem. Amamentar talvez tenha sido uma das mais doloridas, fisicamente e emocionalmente, nos meus primeiros meses como mãe. Tudo estava errado. Meu filho berrava. Era fome lhe corroendo o pequenino estômago. Eu me olhava no espelho, seios feridos, tanto sacrifício, qual era o problema? Eu era insistente no meu desejo, agüentava a dor da ferida aberta e os berros desesperados do meu primogênito. Três semanas e nada, a ferida crescia enquanto ele emagrecia. Ninguém me contou como segurar o bebê e dar-lhe o peito. Muita coisa a gente aprende na marra porque nossas mães “esqueceram.” Os vídeos nas aulas de preparação ao parto não é mão na massa. O boneco demonstrativo na aula de Lamaze está longe da realidade de uma criança de carne e osso e esfomiada nos braços. Enfim, sejamos modernas e sem preconceitos. Contratei uma consultora em amamentação e em poucas horas o problema foi resolvido. Me senti realizada como qualquer outro mamífero. Estava alimentando a cria.

Esta crônica era mesmo pra falar de toda a minha incerteza no meu papel de mãe (quem é mãe sabe, nunca sabemos se estamos fazendo a coisa certa... quem é filho também tem lá as suas dúvidas). Depois destas linhas e milhões de cenas rebobinadas na memória consigo derramar as minhas inseguranças e pouco reclamo dos meus filhos. Ela deveria ter começado assim: “Meus filhos até o dia de hoje competem com aqueles que me chamam pelo telefone.” O texto tomou rumo novo, voilà.

Inspiração nasceu de um telefonema pra mim do meu pai. A conversa durou pouco. Meus filhos, sempre educados em todas as outras circunstâncias, menos esta, cortou a minha conversa ao telefone com seus berros, chantagens e apelos. “As crianças no Brasil não são assim não, a gente fala no telefone sem problemas, elas se viram pra lá. Vocês também não foram assim não,” completou meu pai, certo que a nossa cultura brasileira permanece a mesma há várias décadas. Na hora respondi meio que justificando os gritos das crianças, “sabe como é, pai, aqui a gente cria filho muito só, eles se tornam muito dependentes da gente. Por isto não conseguem dividir a mãe,” disse eu, pensando mesmo nas empregadas brasileiras que tomam conta de tudo, que maravilha.

Pela noite me arrependi. Sou uma mãe que escolheu ter um papel ativo na educação de seus filhos. Tudo tem o seu preço. Há de chegar o dia quando poderei entrar no banheiro e curtir minha privacidade sem o receio de ser interrompida, ou telefonar a um amigo e ficar de papo pro ar. Tento lembrar do meu regresso ao trabalho e já posso sair pra jantar ou viajar uma vez ou outra sem que se sintam abandonados. São crianças felizes e seguras. Há um o tempo particular no amadurecimento de cada um. Há de ser ter paciência, eu repito para mim mesma, não posso esquecer. Assim como as pedras jogadas com precisão, a liberdade acontece a cada pulo.



Victor e Henry vendo a chuvar cair no pátio do Cloisters, NYC, 2007

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