segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Em terra de cego, o cego sou eu
Por Aline Yasmin

Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? (...) É janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo, aceitando a prisão do corpo que, sem esse poder, seria um tormento (...) Ó admirável necessidade! Quem acreditaria que um espaço tão reduzido seria capaz de absorver as imagens do universo? (...) O espírito do pintor deve fazer-se semelhante a um espelho que adota a cor do que olha e se enche de tantas imagens quantas coisas tiver diante de si. (Leonardo da Vinci )


Há cerca de 10 anos descobri em uma dinâmica que eu era um ser visual e verbal, isto quer dizer que eu me orientava basicamente por essas indicações e ficava mais atenta ao que via e falava. Isso se tornou um grande referencial em minhas perspectivas cognitivas.


Pensei que o melhor seria desenvolver as demais possibilidades, o tenho feito desde então numa tentativa de me tornar mais inteira. Era também preciso ouvir. Com os olhos e a boca lacrados.

Por mim e pelo outro.


Nesse tempo eu dei um salto. Não sou mais tão dependente visual e foi aí que me vi diante do universo dos cegos, eu – vidente, mas deficiente de tantas outras formas.


O portal era alto, mas a estética não importava ali - ainda que me chamasse atenção. Entrei pela primeira vez tateando aquele universo claro e escuro. Sem dúvida, o desafio de penetrar no mundo dos deficientes visuais se mostrou instigante, mas um ser tão visual como eu teria que reaprender a não sê-lo diante mais uma vez da necessidade em superar esse caminho tão fácil e irremediavelmente enganador.

Logo na entrada fui recebida pelo zelador que me abraçou afetuosamente chamando-me por outro nome que não era o meu. Mas, justamente ao me abraçar, desconfortou-se e percebeu seu engano. Disse que eu "parecia" uma velha amiga da escola e ter percebido em minha presença, no meu andar, na minha fala uma pessoa que há tempos não encontrava. No meu desconforto, senti-me ao mesmo tempo confortável. Considerando que ali, somos tudo menos aparência, agradeci pelo aparente desencontro e já me vi, de cara, recebida.

Teorizei claro sobre termos a mesma "energia" o que ele concordou.
Na sequência fui recebida por uma vidente - aquela que vê - e tentei durante a conversa ensaiar um discurso filosófico sobre a importância da visão no processo do conhecimento. Estava ali inclusive por uma missão acadêmica.
Ela me respondeu que para começarmos era importante perceber que antes de sua deficiência, estávamos diante de seres humanos, com suas condições específicas, de realidades distintas, de histórias próprias e por isso a forma como lida com a sua cegueira. Alguns nasceram com ela, outras a perderam - crianças, adultos, idosos. Vidas distintas unidas apenas pelo censo comum. Em 2000, existiam 148 mil pessoas cegas no Brasil.


Percebi na minha primeira fala que fazia exatamente o que a maioria das pessoas faz: enquadrei um ser humano em cego x vidente, preto x branco, rico x pobre, criança x adulto, quase sempre em dualidades – antagônicas ou distintivas. Bem, claro que realidades trazem em si especificidades do conjunto, da comuna, do geral, mas numa perspectiva humana é sempre melhor ir um pouco mais fundo. Esforcemo-nos para pensar nisso.


Lembrei-me que fazemos parte de um grande ensaio hipotético. Consumimos resultados de pesquisas e somos estatísticas. Respondemos ao que pretensamente nos faz bem, visto sob determinado prisma "enquadrante". É impressionante questionar que se não fosse assim, tão cartesianamente pensado como seria então? Faz parte da sociedade adotar um convívio gregário, cujo instinto ilusório nos une ou separa perdendo, as características individuais para o grupo do qual pertence.


Entra na sala uma mocinha que espera para ser atendida. Ela não usa bengala. Observei que ainda tinha uma pouco da visão. A coordenadora sorriu e brincou com ela quando disse:
- Essa ainda não passou no teste.
Eu disse não ter entendido a brincadeira e a menina sorrindo explicou:
"- Eu sei que me tornarei cega em pouco tempo, mas ainda não sou. Tenho uma doença degenerativa que apareceu na infância e não tem como controlar. Em breve farei parte do time, mas ainda não passei no teste como verdadeiramente cega."
Disse como se estivesse serena diante da possibilidade. Seus amigos estariam ali de braços abertos quando a escuridão finalmente se anunciasse e ela então faria parte daquele grupo, numa clara inversão dos valores que comumente aplicaríamos diante de tal situação.


Na sequência, entra um belo jovem de bengala (simbolicamente um objeto de apoio e aceitação da condição) acompanhado de uma jovem graciosa aparentemente da mesma idade. Eles estavam de mãos dadas e sorriam. A coordenadora brincou sobre o namoro e pediu juízo. Eles se uniram a outra jovem com baixa visão e observados ao longe eram apenas três jovens, que sorriam, amavam, compartilhavam histórias.


Eram humanos sobretudo.


É óbvio que não quero dizer que não existe uma distância sobre essa e outra – dentre de uma possível realidade. Mas, penso que a maior distância é a que colocamos diante do que nos parece diferente. Nada entendemos sobre esse universo, se não for por ligação ou interesse pessoal. E diante dele colocamos uma aura, um escudo, um bloqueio.

Buscamos a normalidade “aparente” das pessoas e das coisas como um refúgio, talvez como forma de não estarmos próximos do próprio drama do outro. Talvez como forma de não vivê-lo. Tornamos invisíveis o que não queremos ver. Ou o que fere nossas vistas.


Naquele espaço, deparei-me com o inventivo braille, entendi outras linguagens, como a importância do olfato, do tato, do afeto como sinais a que tão pouco nos reportamos. Percebi que podemos ser mais. Que a velha frase ”O que os olhos não vêem o coração não sente” deveria ser posta em desuso.

Precisamos olhar mais com o coração. Abandonar a imprecisão do valor estético visual e encontrar outros contornos. Perceber o invisível, tatear o outro, ouvir seu pulso – aquele que chama e pede para ser ouvido.
Negar outros sentidos e o que está internalizado como conhecimento próprio - individual é negar o outro. É viver em ilusões como se o mundo pudesse ser plenamente abarcado apenas por cores e luz. Cego num mundo onde as aparências nos faz ignorantes, tal qual afirmou no consagrado Mito da Caverna, o filósofo grego Platão.