sábado, 28 de julho de 2007

Falso Privilégio

De Bruno Vaks

Sempre que vejo uma fila, fico curioso. Pode ser fila pequena, ou fila grande. É claro que as grandes chamam mais atenção. Mas se você ver uma pequena em lugar desconhecido, terá curiosidade. Pode ter certeza. Elas despertam essa mesma sensação em outras milhares de pessoas. Algumas vezes fui até a fila para perguntar: -Que fila é essa?- OK. OK. Podem retirar daí fila de banco, porque essa você já sabe do que é, e é um saco. Você com dinheiro ou contas na mão para pagar, perdendo seu precioso tempo e olha ao redor, conta quantas pessoas ainda tem na sua frente e fica possesso quando vê o contínuo com um calhamaço de contas de uma empresa qualquer bem na sua frente. Estou excluindo daí os idosos e grávidas, que merecem uma fila especial e preferencial.

Mas as melhores de se perguntar são aquelas que surgem no meio do nada, na porta de um prédio (eu sei que no centro da cidade, isso com certeza é por busca de trabalho), na praia, na porta de um estádio, entre outros exemplos inusitados. O que importa é que as pessoas estão lá por algum motivo e, conseqüentemente desejo. Chego a um ponto delicado do ser humano, o desejo. Ele se sujeita a esperar por alguma coisa, pois essa “coisa” trará benefícios. Então fila de banco dá prazer? Fila por emprego dá prazer? Momentaneamente não.

São poucas as filas que se desejam. Uma fila para ver um show fantástico é uma hipótese. Uma outra que percebi essa semana é a fila da boate. Boate sempre tem fila. Senão tem fila, é porque não é boa. Parece restaurante badalado. Aliás, a palavra badalo já diz isso. Estava andando por uma cidadezinha balneário nesse ultimo sábado e uma fila gigantesca me chamou a atenção. Deixei meus amigos de lado, estufei o peito e mergulhei fila adentro para saber o que fazia tanta gente jovem junta atrás de uns alambrados. Fui andando até chegar na porta muvucada. Porque fila no Brasil sem muvuca na porta não é fila, é entrada para brinquedo da Disney. E lá vi o nome da boate: Privilége. Olhei para o nome e depois para fila. Em frente aos seguranças fiquei pensando: - Que privilégio essas pessoas terão?

Comecei a andar até o final da fila e fui olhando para a cara de cada pessoa que estava aguardando para ser liberada para entrar. Cada grupo com uma expressão diferente. Uns rindo de historias, outras meninas sempre se arrumando, grupos calados, meninas exaltadas e meninos tímidos. Havia de tudo. Porem o que tornava homogênea essa fila era o desejo. O desejo de se esbaldar e de se divertir, seria corretamente explicado perguntando a qualquer um. Mas vou mais a fundo. O desejo que todas lá queriam encontrar é a possibilidade de se encontrar o amor. Você deve se perguntar: - De novo o amor? – E eu respondo: - É isso mesmo. Se 90% das musicas falam disso, porque eu não. Você já pensou que todos inconscientemente estão procurando alguém na Privilége. Quando se é jovem, você acha que vai encontrar sua alma gêmea que seja no bar da boate pedindo uma tequila com mais 3 amigas. E vocês viverão um conto de fadas. Quando se é jovem, seu nível de fantasia chega a níveis estratosféricos, juntamente com o nível de testosterona (no caso dos homens). Não adianta negar, nem adianta me enganar. O desejo é o fato propulsor daquela fila. Cada uma daquelas pessoas quer amar e ser amada. Nem que seja por poucos minutos, ou por horas. Depende do seu papo. Ao invés de todos estarem com seus grupos na fila, poderia haver um recreador que fizesse essas pessoas interagirem entre si, tornando o ato da conquista mais leve e simples. Não precisaria estar aquela musica “disco dance” como se fosse a dança do acasalamento. Poderia ser algo mais puro, mais verdadeiro. Senti um pouco de alivio por não estar na fila. Fui até o final e imaginei o tempo que as ultimas pessoas iriam entrar e sua pequena angústia para terem o desejo realizado.

Mas não tiro o corpo fora e digo que eu mesmo já fui adepto dessas filas em tempos pouco antigos. Tinha o mesmo prazer que essa molecada, mas os dias passam. Te derrubam de um lado, você se ergue por outro e vai amadurecendo. O evento em si era insano, mas no final tudo era recompensado com o aprendizado. Por isso as filas ainda me fascinam. E o conselho que te dou é que preste atenção nas filas que você vai entrar e olhe para o lado na sua mesa cheia de amigos e amigas. Eles, com certeza, conhecem alguém que pode ser sua alma gêmea. E se não for, continue tentando.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

ESPANTO E CARNE DE BOI

De Aline Yasmin

Eu não como carne vermelha desde a minha tenra infância. Não sei bem como tudo começou, mas sei que aos 8 já recusava com ares de pânico qualquer bife descoberto em meu prato. Isso não foi muito fácil pra mim considerando que na década de 70, com mãe de 40 – cristã do interior – não comer carne vermelha era quase blasfêmia. Isso se agravava pelo fato de minha irmã gêmea univitelina Elian se fartar num bom fígado, o que era sempre motivo de comparações: “ - Se sua irmã come, e é igualzinha a você…”

Morávamos numa casa com muro alto em uma de suas divisas e vários gatos de rua nos visitavam enfileirados desfilando sobre ele – regularmente. Eu era o deleite da galera. Carne no almoço e no jantar para os felinos mais espertos e vorazes. E tanto fiz que consegui me libertar daquela tortura ao convencer minha genitora zelosa de que poderia comer frango e peixe e manter as qualidades nutricionais por meio de outros alimentos - sem passar por aquele sofrimento cotidiano. Com a eloquência de uma aquariana curiosa no ápice do movimento contestatório juvenil (tudo redundância) e munida de argumentos infalíveis, mantive minha dieta ideológica.

Aos 16 em visita a uma tia da roça, deparei-me com outro paradigma ao assistir de perto a morte de uma galinha, que visceralmente corria sem cabeça tentando se libertar de si mesma (pensei) pelo quintal pisoteando em titicas próprias e irmãs. Não sei se é contemporâneo, mas Freddy Krueger - personagem da cine-série Pesadelo em Elm Street e o célebre Jason de Sexta-Feira 13, épicos 80 – situados temporalmente na ocasião - pareceram-me fichinha diante daquela simpática tiazinha (não a confundam com aquela mascarada 90) com seu facão afiado e expressão serena.

A cena posterior foi ainda pior com todos abraçados e felizes – como diz minha comadre lírica Rowena – ao deliciarem-se naquele molho pardo. Eu – óbvio, branca. Volto-me aos 08 anos. Restaram os suculentos alfaces frescos, a couve refogada e o feijão mulatinho - sem culpa nenhuma. Áh, sim e um oceano inteiro de peixes e frutos do mar.

Tempo passado e cá estou numa estrada extensa a caminho do interior de uma cidade conhecida também por um famoso frigorífico. A estrada é de chão e com muitas curvas, o que me impede de cortar qualquer veículo por uma pequena extensão de 50 quilômetros aproximadamente. Curvas fechadas e comboios intermináveis. Põe-se a minha frente para meu desespero, um caminhão lotado de boi, boizinhos coitados, socados em uma carroceria. Lá deveriam ter pelo menos 20, 30 – não sei. Lembrei-me de um vídeo no YouTube – "Terráqueos". Lembrei-me também da teoria do professor Fernando Pacheco do "Homem Ecológico", na sequência, da alma sensitiva de Aristóteles, da fúria de um boi fugindo do matadouro na eminência de sua morte.

Os boizinhos tentavam se amparar – instintivamente – uns sobre os outros, a cada curva. Eu pensava na entrega. Da mercadoria e da própria entrega. Por que ainda lutam para manterem-se de pé se estão a caminho da morte?

A estrada era longa e as curvas fechadas - como já havia dito, me fizeram refletir sobre caminhos e resignações, liberdade e opções. Fez-me pensar também o rebanho de bois e vacas resignado.

Ocorreu-me Sartre que falou de liberdade, embora não tenha pensado nos bois.

Ocorre-me a humanidade, Nietzsche e sua boiada.

A buzina vizinha soa como um berrante.

Também sigo para o abatedouro. A rotina me espera: máquina de moer carne humana – diria Caê.

Tropeço, escoro-me nas curvas em paredes imaginárias, acredito na estrada e mantenho-me de pé. Tal qual os bois, tais quais humanos.

ADEUS

Por simone Couto


Bruno Vaks
falava hoje na sua última crônica postada na net sobre o grande benefício de se dizer "olá" em lugar do corriqueiro "oi". Defendia ele, o "olá" bem dito, ao se conhecer o outro.

Entre as minhas obsessões, carrego o gosto pelo saudosismo, perda, partida. Hoje pensei em todo os adeus— ditos, não ditos, dados, recebidos ao longo do meu caminho.

E se amanhã tiver eu que dizer um adeus? Como? Qual o adeus entre tantos?

“Não posso ficar nem mais um minuto com você, sinto muito amor...” Se eu perder este trem...”. Quem nunca derramou uma lágrima quando a voz falhou? Ou deu um aperto frio de mão quando o desejo era um abraço longo? Há o adeus que nunca foi dito. A estação vazia, o viajante parte—ele e a sua bagagem.

Há o adeus que já nasce na hora do encontro primeiro. Eles se conhecem, se entrelaçam, se dividem e já estão marcados com o adeus. Penso naquele dado a quem se ama antes da hora. A vida foi breve. O amor foi breve. A estrada mútua passa a ser de só um. Este eu ainda não vivi.

Macalé já dizia, “Sim, eu estou tão cansado, mas não pra dizer que eu não acredito mais em você... ” Adeus dolorido o cantado pela Gal, rasgando a alma. Este é o adeus dos amaldiçoados, dos que amam obsessivamente e não se entendem, a dor é grande demais, o cansaço é o que resta. O desejo jaz.

Há o adeus que não se quer dar, se empurra para o dia seguinte. A palavra fica ali, dissimulada, nas ligações não feitas, nas cartas não mandadas, nas horas intermináveis de espera de um sinal de vida alheio. E quando o sinal chega, é tão brando, desbotado, que o adeus já nem é necessário. O tempo se encarrega do aceno.

Para os iludidos, é necessário o adeus cara-a-cara.

Finalmente há o adeus mudo, daqueles que se calam por si mesmos em solidão plena.

Julho, 2007

sábado, 21 de julho de 2007

O Elemento Surpresa

de Simone Silveira


Ainda é possível viver no mundo de hoje sem um telefone e ainda assim sentir-se conectado com o outro?

Há três semanas atrás estava eu presente em Paraty no Festival Literário Internacional (FLIP)—fazendo oficina de crônica, assistindo palestras de autores do mundo todo, incluindo Amos Oz, um dos grandes escritores do nosso tempo, lendo para as crianças pelas manhãs na flipinha e pela noite, conhecendo gente e batendo papo regado à melhor cachaça nacional.

Em um cenário destes quem se lembrará de recarregar a bateria do celular às três, quatro, cinco da manhã? Certamente não eu. Além do mais, havia somente duas tomadas para suportar a parafernália eletrônica dos meus três companheiros de quarto de hotel—computadores, câmeras, fones, I-pods.

No segundo dia o marido reclamou:—Você não me liga, sumiu. Você é a minha mulher...” Para solucionar o problema, dei um jeitinho brasileiro, já que os orelhões da cidade, assim como os banheiros públicos se tornaram inacessíveis. Passei a usar o celular alheio, me sentindo assim meio canalha como filando o cigarro do outro. Meu marido se confortou e eu também.

Fim do festival e de volta à casa, mala desfeita, noto a falta do carregador do bendito celular. “—sumiu, sumiu lá no hotel”, anunciei. Podia ser pior, pensei, afinal no ano passado, foi a vez do celular desaparecer no vôo entre São Paulo e Nova Iorque. Quem me conhece bem deve ter pensado que o ato foi proposital. afinal, nas minhas obsessões, o medo de falar no aparelho, herdado com orgulho do meu pai Jurandir, rola através dos anos sem melhoria.

Ironicamente, minha casa da infância, na pequena cidade de Bom Jesus do Norte, no Espírito Santo, foi a primeira da rua Cândido Peralva a ter um telefone. Minha mãe era uma visionária. Acreditava no progresso. Era ela parte do “country club” local e encomendava discos do Rio de Janeiro. Assim eu cresci ouvindo a Gal Costa. Meu pai, na contra-mão, era fazendeiro negociante, fazia as contas matemáticas na cabeça, não confiava nem nas calculadoras.

O telefone tocava muito. Tocava para todo mundo na rua Cândido Peralva. “—Pode chamar a Dorinha, por favor?”, dizia voz. “— Tá. Liga de novo daqui a dez minutinhos.”, dizia aquele lá de casa que pegava o gancho primeiro. E assim, cresci sabendo da vida privada de todo o bairro.

Na adolescência, morando então no Rio de Janeiro, minha mãe resolveu colocar cadeado no telefone para evitar, segundo ela, maiores gastos e também os telefonemas de possíveis pretendentes a suas três filhas. Eu, magrela e feia, não recebia flores muito menos chamadas telefônicas. O amor chegou mesmo pela primeira vez quase lá pelos meus dezoito anos e eu não precisei do telefone. O futuro geologista morava a poucos quarteirões da minha casa na Tijuca. Minhas tardes colegiais eram preenchidas na companhia da família Filgueira, com direito a bolo de laranja e prosa com a sogra, dona de casa excelente. Pela noite, o namoro era no sofá entre as duas irmãs, ou furtivamente, sentada no meio-fio daquela vila tijucana.

Ontem estava dirigindo por uma estrada de terra batida. À frente, um caminhão de brita deixava um rastro de pedras caídas. Pensei que a minha vida sem celular durante os últimos dias tem sido um pouco assim. Eu não ligo antes para os lugares, apareço no mercado e pergunto se lá se vende sementes de grama. Holly Bellebueno, uma amiga, resolve me visitar pois não respondo às suas mensagens acumulando-se na minha caixa postal (o recarredor encomendado na semana passada ainda não chegou). Tomamos limonada fresca e falamos de literatura. Eu retribuo sua visita com outra inesperada.

Tenho surpreendido e tenho sido surpreendia pelo outro. Meus dias acontecem como aquelas pedras que caem aleatórias pelo caminho.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

PAN’ES ET CIRCENSES

PAN’ES ET CIRCENSES
De Aline Yasmin

Desde que deixei as obrigações publicitárias que me obrigavam a acompanhar o conteúdo televisivo para entender o direcionamento da mídia de massa, não tenho mais o hábito de ter como off um áudio da programação em minha rotina. Assim, a qualquer sinal de desocupação, ocupo-me com pilhas de livros que me esperam silenciosas na cabeceira da cama – diariamente.

Não reconheço a nova geração de atores ou a programação atual e fico completamente alheia a nomes de novelas ou jargões eventuais lançados pelo eletrônico caleidoscópio RGB. Sendo assim foi totalmente por acaso que minha televisão estava ligada e mais acaso ainda - eu estar em casa, quando uma sinapse – reflexo de memória remota – trouxe súbito a trilha do plantão da telinha que gritava na sala para os ouvidos atentos dos meninos em férias.
Bem, ruído de plantão é aquele acompanhado de intuição ruim. Sabe-se infelizmente que na maioria das vezes o assunto pode ser bom para audiência, mas não faz bem às almas mais sensíveis.

Despertei-me do transe literário e quase instantaneamente apossei-me de uma curiosidade infantil ao pular da cama para o sofá da sala ao ouvir a notícia que viria.

O telefone toca e o vizinho quer saber se tenho açúcar para emprestar.

_ Não…! Sabe que não tenho açúcar em casa?! Penso na minha prepotência em querer doutrinar as pessoas ao usar discursos contra a velha cana refinada e que preciso entrar em forma mesmo não comendo açúcar, o que é inevitável ao olhar para os corpos sarados expostos no Pan.

Na TV o apresentador parece meio assustado, com olhos arregalados. Imagens alternadas e confusas mostram rastros de fogo. A cobertura é ao vivo e ele tenta articular uma conversa com o repórter local para entender a situação. Pane no áudio. Ele avisa que volta mais tarde para maiores detalhes sobre a tragédia com o vôo 3054 da TAM em São Paulo. Fala de um incêndio no aeroporto do Rio e uma voz apressada na sala, sentencia: “

- …terrorismo, quer ver?!”.

Entra uma imagem flamulante - azul, verde e amarela. Atletas cantam o hino nacional. – “Hoje foi um festival de hino brasileiro” - conta feliz a repórter rente ao pódio. O vencedor levanta a medalha e a beija. A platéia agradece feliz por seu empenho. Lá, todos se orgulham ser brasileiros.

O estúdio volta e anuncia a tragédia. “- Não se sabe ainda quantos são”- estão ao vivo – “As pessoas certamente estão mortas”, anuncia o repórter via satélite. Não é possível prever. - Ao vivo - meu pensamento se agoniza impotente. O fogo aumenta. Lá, também há aglomeração. Não há rostos felizes. As cores: matizes azuis e vermelhas flamejantes misturadas ao chumbo.

Piscina. O jovem nadador chega na frente. Seu corpo desliza sobre a água para alcançar a vitória. A água da piscina é azul, fluída e refrescante com fluxo contínuo longitudinal.

A cena volta a alcançar o prédio, a avenida imensa e as casas do entorno. Meus olhos se fixam atônitos. Mais uma vez, simultânea a câmera capta a imagem da água de uma plástica composta. Essa é espessa, ávida e se distribui em leque tentando alcançar 360 graus.

Fico pálida ao pensar novamente que estamos ao vivo. Essa imagem me apavora. Mais ainda, de não saber se eles estão vivos. E se agora - enquanto assistimos - eles ainda estiverem lutando? Assistimos ao vivo seus óbitos? Quase posso ouvir a dor. As imagens se multiplicam. A cobertura é completa. Eles estão em todos os lugares. Buscam as famílias, os passantes, os vizinhos, a moça do táxi quase atingido, o motorista, uma voz distorcida do piloto solidário querendo dar sua versão – incógnito. Temos uma visão de cima, de todos os lados e ainda uma projeção espacial forçando um laudo ou explicando uma possível pane.

Intervalo. Os comerciais são de uma beleza irretocável. Quase me esqueço que estou triste.

Também sinto dor agora.

Tenho certeza que não conheço qualquer pessoa naquele vôo. Também não conheço Porto Alegre, portanto minha relação de afeto específica não existe. O que existe é a dimensão humana. Da ética - solidária – o que me remete ao filósofo medieval Agostinho, quando penso no amor universal. Acredito nele, tanto quanto no particular. Lembro-me de ter respondido sobre isso ao meu professor de Ética - Delboni.

A moça de sorriso emblemático volta com seu uniforme cinza e amarelo. Ela está feliz com os resultados do Brasil e precisa comunicar. Convida a mãe para a entrevista que grita pela vitória do filho e admite - rouca - que com um pouco de gengibre recupera a voz para o dia seguinte.

A torcida grita enfurecida. Os oponentes perderam. Alguns choram. O ginásio está lotado.

A avenida interditada abriga curiosos. O circo pega fogo. A cidade está em silêncio e espera – é o que dizem.

A TV tem pressa e procura pelos mortos.

Os anunciantes agradecem.

Eu assisto aflita. O silêncio e a torcida.

Outros tantos milhões pedem pão e circo nessa arena romana. - PANEM ET CIRCENSES !, gritam.

A TV - sacia.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Memória anunciada

De Bruno Vaks


Outro dia, não muito tempo atrás, estava esperando o elevador para uma consulta médica quando me deparei com um cartaz de aviso. Ao lado da porta do elevador, havia um quadro de avisos e informações sobre saúde, já que estava num prédio de consultórios e exames. Me chamou a atenção a divulgação de uma palestra que ia ser ministrada não sei quando mas o tema era interessante. Li aquilo junto com o ponto de interrogação que vinha ao lado: “Se Deus é amor, porque sofremos tanto?”. Fui para minha consulta e fiquei com essa frase na cabeça. Continuei com a vida e ontem ela me retornou com força total.

Colidiu com a sensação de impotência que sofri quando vi na televisão, a extensa cobertura sobre a queda de um avião super lotado em São Paulo. Estava num lugar aonde só passavam imagens, mas não som. Fiquei tentando decifrar o que os repórteres diziam nas poucas vezes que apareciam, e isso me agoniava. Sabia que era em São Paulo porque muitas vezes passei por lá. Um amigo meu mora naquela direção. Tenho uma relação complacente com São Paulo, por tudo que vivi por lá numa época não tão remota. Só fui saber da tragédia, realmente em casa quando soube dos mais de duzentos passageiros vindos de Porto Alegre. Cidade que também tenho uma relação de amor e raiva, mais amor diga-se de passagem, por tudo que vivi por lá num passado também não tão remoto (mas vamos deixar esse assunto para uma outra oportunidade). Me identifiquei com todos os sotaques que estavam presentes aquele avião.

Veio a minha cabeça as sensações que todas aquelas pessoas passaram em poucos segundos de vida. Tirando os solavancos de turbulência alheias, tudo estava na perfeita harmonia. De repente, sei lá se foi erro humano, erro técnico, erro político, não quero entrar nesta alçada porque minha onda não é essa, BUM. Já tem bastante gente criticando e que entende do assunto bem mais do que eu. Quero somente visualizar suas ultimas sensações, seus últimos sentimentos e seus últimos amores. Amores que nesse momento foram despedaçados e esvaziados repentinamente pela tragédia. Sempre imaginamos o avião despencando milhares de metros sem controle, as pessoas gritando sem parar, desesperadas, com máscaras de oxigênio aparecendo, prontas para o pior, mas ainda com o pensamento nos entes queridos, nas coisas boas que já fizeram, nas coisas que ainda pretendiam fazer, no beijo que deixaram de dar e do sorriso que passou batido para a morena estonteante.

Na terça-feira não foi assim. Estavam praticamente no solo paulistano quando tudo aconteceu. Imagino que não tiveram tempo de pensar em nada, simplesmente sumiram. A escuridão veio à tona. Aí veio um pensamento meu: Será que essas pessoas sofreram muito? Não pensem que estou mórbido não! Se elas não sofreram tanto, ou não sofreram, Deus foi conivente. Todas eram amadas por ele, segundo o tema da palestra naquele centro médico. Ele foi amor à vida inteira para essas pessoas, porque no momento final não sofreram (-quero enfatizar que isso é simplesmente uma hipótese, ok?). Será que muitos desses estavam apaixonados pela vida, por suas mulheres, seus homens, seus filhos? Acredito que sim. Não vou relevar que também teriam pessoas tristes por lá. Isso é bem possível de acontecer. Mas se Deus é amor, É luz, É a redenção como dizem? Buscamos nele o conforto, o bem estar. Espero que ele tenha sido bondoso com essas pessoas ao longo do tempo de vida delas. Espero que elas tenham aproveitado o máximo, os pôres do sol, os espetos corridos, os chimarrões e o “lagartear” no Brique. Da mesma forma, que os outros possam ter aproveitado as macarronadas do Bexiga, os trânsitos caóticos no final de tarde, o pôr do sol enfumaçado e a diversidade de seus habitantes, nascidos lá ou não.

Não tenho idéia de como encarar a morte, se com um simples “olá, chegou a minha hora” ou até um “Você por aqui?”. E nem sei como essas pessoas que sumiram ontem sabiam. Mas quero ter a certeza que o amor que elas sentiam, foi o mesmo que eu senti quando me apaixonei pela primeira vez, quando um sorriso me muda o astral, ou quando o sol se põe sobre o morro perto da minha casa. Quero que elas descansem em paz, e me solidarizo com suas famílias, num horror jamais imaginado, mas sofrido. Gostaríamos que isso não acontecesse nunca mais, como outras milhares de coisas que acontecem diariamente.

Por isso não participei da palestra e discordo da pergunta feita pelo possível palestrante. Deus não é amor. Eu nem sei lá o que é deus. Nem sei bem porque as coisas acontecem, porque estamos bem e outra hora estamos mal. Mas temos que seguir em frente. Drummond disse que a dor é inevitável, o sofrimento é opcional. Ok? Para muitos isso é bastante plausível. Para outros, o sofrimento também é inevitável para o crescimento, para você conhecer o amor, para você conhecer a vida. Pena que seja assim o andar da carruagem. Resignado, me despeço com um grito silencioso para aqueles que viveram o amor, que viveram suas vidas e que naquele começo de noite não sofreram.