quinta-feira, 25 de outubro de 2007

42nd Street

Por Simone Couto

Estava a caminho do Fashion District em Mahattan à procura de fitas coloridas. No trem me perdi lendo sobre as chamas lambendo o Estado da Califórnia. O trem diminuiu a velocidade. Na próxima estação, a 42nd Street, eu desceria. Guardei o jornal lido pela metade. Trem quase inerte. Me levantei e caminhei rumo à porta. Um rapaz jovem sentado à minha frente me olhou. Olhar de surpresa e despontamento. Tinha um caderno e lápis na mão. Furtivamente, mirei o papel daquele estranho. Então a imagem rabiscada se traduziu em familiaridade. Vi meu rosto, meus cabelos soltos, meu perfil agudo. Era eu. Era eu ali. Clara. Ele me rabiscou três vezes. De frente, de lado. Aquele homem me desenhou e eu nem notei. Ando dispersa por estes dias, bem sei. Ele me notou quando eu mesma não me notava. Um dia me disseram ser eu uma musa inspiradora. Não era mas escolhi acreditar. Sempre se sofre desmedidamente quando enganado. Há enganos que escolhemos para agradar à alma vaidosa. São enganos feitos de temporaneidade. Como água que mais cedo ou mais tarde sempre evapora. Até esta manhã, de verdade, nunca servi de inspiração para ninguém. Para mim mesma, talvez, jamais para o outro. Comigo sou honesta. Breve. Dura. Ora me inspiro nos confusos labirintos que crio a todo tempo para ter alegria, ora na saudade e tristeza sem lógica, ambas tatuadas em minhas entranhas, ora nas minhas obsessões carnais e outras mais da alma. Mas hoje, hoje eu fui verdadeiramente uma musa. Ninguém me contou. Eu vi.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Dumbo NYC

Por Simone Couto

Dumbo is crepuscular—Bricks, dormant train tracks, graffiti—art crime on the walls. Inside of lofts, studios, we are under construction, so is Dumbo. But not today, not today, not today. I see the sunset—the rain getting closer and closer, bringing me the midnight blue sky. East Side Highway without traffic. Brooklyn Bridge without traffic. Latent. At this moment, no gorgeous model( they never smile) is being photographed. No movie is being filmed. Today, the streets belong to us, the wolves, always ready to devour the unknown. We are nameless. The river belongs to us, the underground lovers (nameless still. Still). The river is quiet, the sage green river... Tedious Wednesday. The trains never stop running—neighborhood's heart. Dumbo is loud, so loud that one becomes quiet in his core. My core is all silence. Right now, 5:19 p.m., dark autumn skies. My gloomy soul rests while Dumbo pulses. Good Night, restless souls.

domingo, 21 de outubro de 2007

Tropa e Elite

Por Aline Yasmin


Dois assuntos têm permeado a massa nos últimos dias e mesmo que distintos ambos perpassam a mesma temática: a violência.

Um gira em torno do filme Tropa de Elite do diretor José Padilha e o outro, de um artigo do apresentador Luciano Huck sobre o assalto sofrido.

Num olhar mais aprofundado podemos destacar que a discussão é o que emerge de uma situação ainda mais complexa que é a desigualdade social e suas representatividades.

Simultaneamente temos a palavra "elite" posta em dois planos antagônicos. De um lado, heróico, de outro culpado. A questão aqui não é julgar e tampouco condenar um ao outro, mas provocar uma reflexão sobre a medida de valores em que a sociedade se interpela.

Somos todos reféns. Talvez esse seja um fato. Ricos ou pobres. Estamos reféns de nossos próprios valores e da distorção a que estamos expostos.

O batalhão do BOPE – polícia de elite – é mocinho, mas utiliza-se de meios ainda mais violentos para reduzir a violência – física e moral, inseridas inclusive na própria estrutura institucional. A população aplaude em sua maioria, as crianças cantam suas musiquinhas ..." pega um, pega geral..." em coro e a estética cinematográfica é "cult", quase digna de indicação ao Oscar.


A elite do mauricinho é alienada e opressora, ícone da desigualdade. O bandido é a vítima. Não estamos propondo cultuar o malfadado objeto Rolex, nem dar voz ao excessivo valor material da massacrante sociedade de consumo da qual também somos reféns – obviamente referenciais do desnível social e muito menos em menos tirar o êxito da "exemplar" corporação.


A reflexão é sobre o que está sendo discutido e o que estamos cultuando enquanto valores referenciais que passam a justificar os meios pelos fins. Talvez seja propor um pensamento onde a tendência não seja balizar-se na dualidade maniqueísta separando realidades entre o bem e o mal, mas um pensamento onde haja matizes, nuances que possibilitem isolar condutas e não simplesmente entrar no jogo cartesiano de enxergar as extremidades num plano meramente linear.


Nem toda classe média financia o tráfico, nem todo rico é alienado, nem todo pobre é ladrão, nem todo ladrão é vítima – ou o contrário. Separar o jogo do trigo não é estabelecer paradigmas libertadores ou dogmáticos.


É necessário estabelecer uma crítica, ao invés de procurarmos bandidos ou mocinhos. É necessário – sim - formarmos massa pensante, consciência crítica para buscarmos juntos, um diálogo: pobres, ricos, aviltados, violentados e violentos – uma nova elite – tropa social desalienada – da matéria e de discursos viciados.

sábado, 20 de outubro de 2007

Brasil, il, il, il

De Bruno Vaks

Está bom. Todos sabem que futebol é coisa para entendido, mas todo mundo dá pitaco. Até os mais desinformados. Escrevo assim para não ganhar nenhuma ofensa vinda dos meus três leitores (Obrigado Sim e Aya, o outro ainda é desconhecido). Mas o fato é que quero dissertar – esse é o verbo – sobre o jogo do Brasil que ocorreu ontem (dia 17/10) no Maracanã. Após sete anos de televisão, a equipe milionária brasileira veio fazer um espetáculo aqui no Rio.

Tenho que dar parabéns à ordem e a civilidade, menos no Metro, diga-se de passagem, que encontrei ao longo das 3 horas que passei por lá. Tirando a goleada e as jogadas bonitas, posso garantir que foi um jogo para lá de burocrático. Muitos erros, muitas afobações, muitas bolas perdidas, mas esse não é o fato que irá preencher essa crônica hoje. Não as jogadas, os dribles e os gols, mas sim ao que eu chamo de hipocrisia do brasileiro.

Também não vou citar nenhum filosofo francês ou alemão para repetir suas palavras sobre o ambiente, mas vou evocar a extensa cultura carioca de ser, que cultivamos há anos e anos. Achei chôxo (se escreve assim?), sem sal e um pouco desanimado o jogo da “família brasileira” como muitos falaram. Já reparou que ninguém fica gritando Brasil, Brasil o tempo inteiro? Quando uma bola batia na trave cantava-se Brasil duas vezes, e todos calados novamente. Enquanto isso um lado da arquibancada começa a cantar gritos de guerra do Flamengo enquanto o outro lado grita hinos do Vasco. Ora se é um jogo nacional, porque cargas d’agua a mesma torcida fica se provocando? Hipocrisia um.

Outro fator que não me comove é esse sentimento falso de patriotismo exacerbado. Explico, calma. Confesso que até hoje me emociono com o hino brasileiro por suas palavras bonitas e complicadas que muitos que o cantam enrolam-se com palavras imaginárias ou enrolam até chegar no refrão. Eu já fui um desses e até hoje cometo gafes. Mas não consigo cantar de jeito nenhum aquela cantiga criada por algum publicitário como eu, dizendo: Eu sou brasileeeiiiro, com muito orgulho, com muito amor. É intragável. Concordo que muito amor tenho pelo Brasil, agora dizer que sou orgulhoso é omitir tudo que se passa nesse país e com a sucessão de acontecimentos que vamos deixando para trás. Orgulho de ter um país corrupto, ingrato e com desigualdade social? Peraí, essa é uma hipocrisia camuflada que todos cantarolaram sem um mínimo de culpa, por isso essa é a dois.

Mas como todos, acredito eu, me divirto com os comentários que escuto de outros torcedores, vindos do lado, da frente e de trás. Preste atenção, tem tanto comediante que é capaz de você passar o jogo inteiro rindo. Claro, se o seu time estiver ganhando. Mas chega a ser engraçado que mesmo depois de execrar o tal jogador, quando ele faz gol continuam falando mal e às vezes o fazem por puro orgulho. Orgulho de ser brasileiro como dizia a musica? O que não consigo entender é a relação de amor e ódio que as pessoas tem em relação a alguns jogadores. Como aos dez minutos do primeiro tempo você pode odiar o tal jogador pedindo a cabeça dele, da mãe e do papagaio e aos doze minutos quando ele mete um gol você declama poemas e juras de amor ao mesmo cabeça de bagre que você xingou? Isso me cheira a mentirinha do tempo da escola para esconder da professora porque você chegou atrasado do recreio. Não consigo achar outra palavra a não ser hipocrisia o que ocorre. Está ai a numero três.

Vocês devem estar pensando que vou enumerar ate dez, as melhores hipocrisias cariocas num jogo de futebol. Não vou não. Três está de bom tamanho. Isso tudo foi escrito até agora para que eu possa demonstrar a tamanha felicidade em dizer em bom e alto tom que a musica que foi mais comemorada no jogo do Brasil, tirando a comemoração do gol com a jogada fantástica do Robinho, foi a musica para o Galvão Bueno. Acho que nunca num estádio, vi tanta gente pulando de alegria e satisfação num grito de guerra que manda o locutor mais odiado e amado da Globo tomar naquele lugar. Os pulos de felicidade aí sim eram legítimos. A rapidez com que a musica fluiu também foi assustador. Queria eu estar na cabine para ver a cara do sujeito. Isso sim é a irreverência carioca, isso sim mostra a cara do povo e daquilo que ele não quer. Isso sim não é nada hipócrita.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Santa Teresa por ele

Por Simone Couto

Homem não chora. Quem chora é ela, Santa Teresa. Eu vi. Chorou minutos antes de você chegar.

Eu me arrumei todo. Olha que não sou de vaidade. Pensei em colocar a minha melhor roupa e acabei mudando de idéia. Queria te encontrar com a cara limpa. Não coloquei brilhantina no cabelo, não usei meu terno branco. Aparei de leve a barba. Me enchi de esperança.

O que fiz foi esvaziar a mente. Desmarquei a consulta das 11:00 horas com o dentista, despachei a empregada e dei-lhe uma gorjeta generosa. Desci e fui até a esquina. Comprei um maço de cigarros. De volta à casa, dispus o pacote e o coloquei na mesa ao lado da cama. Antes de tomar um banho, telefonei para o taxi e pedi que me pegasse às 19:00 horas. “Não posso me atrasar, informe ao motorista,” eu disse à telefonista da agência de taxi.

“A primavera é uma dama tímida”, pensei ao passar pelo o Aterro do Flamengo e ao avistar escassas flores de um rosa pálido nos galhos das árvores. Seguimos. As ruas estreitas e as curvas do morro surgiam aos poucos. Aquilo tudo era uma visão familiar. O taxi parou. Fui generoso novamente na segunda gorjeta do dia.

Pisei em Santa Teresa e as primeiras gotas de chuva, quase invisíveis, molharam a linha do bonde, os paralelepípedos disformes, as buganvílias agarradas no muro, o mesmo de meses antes, onde nos apoiamos entre uma banda carnavalesca e um beijo perdido na multidão. 19:20, ainda tenho dez minutos. Que fazer com estes dez minutos? Acendi um cigarro.

Teresa chorando você não viu assim como a minha alegria desfalecendo. O porvir foi assim, eu te conto: dose de cachaça descendo quente pela garganta, o pandeiro tocando desafinado, "você manhã de tudo meu, você que cedo entardeceu, Você de quem a vida eu sou, E sem mais eu serei... Você um beijo bom de sal, você de cada tarde vã, Virá sorrindo, de manhã..."

O músico passou o chapéu. Desta vez fui miserável. Paguei a conta. Caminhei rua abaixo por entre os trilhos. Matutei com os meus botões, ô mulher ingrata. Vá pro diabo que te carregue.

Santa Teresa Por ela


Por Simone Couto

Eu chorei você não viu. Também não compreenderia.

Eu me aprontei toda. Pensei em colocar a minha melhor roupa e acabei mudando de idéia. Queria te encontrar como realmente sou. Não prendi meus cabelos, não usei batom vermelho. Me preenchi de coragem.

O que fiz foi esvaziar a mente. Desmarquei a reunião das 11:00 horas com um cliente, liberei a empregada. Fui até a esquina. Comprei um ramalhete de dálias alaranjadas. De volta à casa, dispus uma por uma no vaso e o coloquei na mesa ao lado da cama. As dálias dividiram em harmonia o espaço com a edição antiga de Madame Bovary. Antes de tomar um banho e me preparar, telefonei para o taxi e pedi que me pegasse às 19:00 horas. “Não posso me atrasar, por favor informe ao motorista,” eu disse à telefonista da agência de taxi.

O mar é traiçoeiro, pensei ao passar pelo o Aterro do Flamengo e ao avistar árvores crescendo em solo frágil. Seguimos. As ruas estreitas e as curvas do morro surgiam aos poucos. Aquilo tudo era uma visão familiar. O taxi parou. Paguei o que devia. Desci.

Pisei em Santa Teresa e as primeiras gotas de chuva, quase invisíveis, molharam a linha do bonde, os paralelepípedos disformes, as buganvílias agarradas no muro, o mesmo de meses antes, onde nos apoiamos entre uma banda carnavalesca e um beijo perdido na multidão. 19:20. ainda tenho dez minutos. Que fazer com estes dez minutos? Quis acender um cigarro mas não tinha fósforo.

Meu choro você não ouviu. Derramei umas poucas lágrimas. O porvir foi assim, eu te conto: Sentei-me no meio-fio, tirei um livro de Freud de dentro da bolsa. O abri em uma página qualquer. Li: Quando amam não desejam; e quando desejam, não podem amar. (Cap. IV, II,2).

Meses sem noticias e agora ele quer me ver? Desci a ladeira caminhando com passos tortos por entre os trilhos. Todo caso de amor fulminante, mais cedo ou mais tarde passa, suspirei aliviada. Cinzas, só as da quarta-feira.


domingo, 14 de outubro de 2007

Os Iluminados Efêmeros do Soleil
(dedicado especialmente à atriz Juliana Carneiro da Cunha)

Por Aline Yasmin


Depois do espetáculo eu e Caê – embora exaustos – não conseguíamos dormir e ainda que precisássemos acordar cedo para o primeiro vôo, procuramos um canto onde pudéssemos transbordar todos os pensamentos que nos contornavam. Estávamos embebidos de imagens e referências pessoais. Era preciso falar delas.

O ir e vir mental foi um deslocamento inevitável até aqueles instantes onde tudo nos pareceu sublime. Sublime no sentido dor. O belo e o sublime se divergem nesse sentido – e o último nos parece mais tocante. Talvez pudesse dizer que seja uma superação. É mais.

Os efêmeros estavam em todos os lugares. Não há como ignorar (plagiando a grande diretora Ariane Mnouchkine) também a sua platéia. Notáveis e anônimos que se viveram durante longo tempo, compartilhando sentimentos e olhares, tais quais cúmplices desta história – fomos uma massa entrelaçada e orquestrada magistralmente pelos iluminados atores do Soleil. Também fomos efêmeros. Choramos e rimos juntos – fomos únicos e não somos mais. Fomos conjunto cena – platéia – arquibancadas – aromas - texturas - sabores - água.

O espetáculo é tudo. Impressiona-me não somente as personagens e histórias construídas, mas a concisão de tudo que nos circunda. Impressiona-me o ator que limpa o chão com a mesma dignidade com que entra em cena, o olhar daqueles que movem as estruturas - quase como extensão cenográfica (mas ao mesmo tempo absolutamente incógnitos), a atenção do grande regente a cada gesto, a sincronicidade das cenas, a leveza e a densidade e o virtuoso processo – que mais podemos chamar de generoso – em nos proporcionar o contato mais profundo com o que chamamos humano. Fomos Humanos aos nos depararmos com a fragilidade do que somos, ao tocarmos de perto fragmentos de nossas vidas. Nos identificamos ao certo com tantos e é isso que universaliza nossa particularidade: a solidão, a fome, a espera, o desejo e a memória.

O vôo chegou na hora prevista em Vitória. Ao chegar em casa, dormi. Sonhei com Os Efêmeros. Os frequentei tanto quanto os fizeram em mim. Revisitei palavras – em francês, língua adormecida que sorvi como o delicioso iogurte - dialoguei com alguns e a outros acariciei. Compreendi a imensidão de nossa finitude e que para ela nem precisariam palavras. Bastaria a dignidade de Sandra, a busca de Jeanne, o altruismo de Manon, a superação de Gaëlle, o olhar da Perle e o gesto da Nelly, diante de tantos outros gestos como linguagem e significação – sinais de nossa vã existência – sem os quais nada representaria.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

CARTA ENTRE AMIGOS
por Aline Yasmin

... Ontem engoli água do mar... foi bom. Por mais engasgante que tenha sido, foi bom. Revivi sensações de moleque quando eu me jogava no mar e acabava engolindo muita água, muitos caldos... tenho revivido sensações de adolescência de infância. Acho que sou mais feliz hoje do que sempre fui. Eu quando moleque achava o mundo muito estranho. Hoje, acho-o mais estranho ainda, mas aprendi a amar essa esquisitice. Porém, minhas sensações mais profundas, que partem de cheiros e gostos, seja da chuva na grama, seja a amora da árvore, me remetem a sensações muito puras, porém, já sentidas... Aí eu tenho a impressão carnal de que já vivi todas as novidades sentimentais possíveis. Apesar de me sentir num momento incrível de relação com a pulsão do existir, tenho a impressão de que as coisas sentidas, já foram sentidas... Aí li um conto meu escrito há algum tempo e lá, um personagem expressa uma sensação minha: as nossas sensações de adultos, são reverberações das sensações vividas na infância e na adolescência ou há muita novidade de sensações??? Talvez ter filho (como você teve) traga novas sensações. É isso?

A meu amigo sobre sensações

Sabe, o filósofo grego Platão - de quem ultimamente tenho gostado muito, diria que existem as reminiscências - na verdade, idéias inatas que o homem contemplou em contato com os deuses. São lembranças de uma outra vida que o homem traz a tona em contato com a percepção das coisas. Depois disso tudo seria falso - ou apenas cópias do ideal (idéias perfeitas) e estamos falando do que imaginamos ser a vida real.
Existe também, creio eu, a perspectiva de que estamos em permanente construção. Claro que a significação de um caldo mudou, porque o mar também mudou pra vc. Nós mudamos para o mundo e isso faz com que o mundo mude também e o que parecia esquisitice, se tornou seu domínio. Vc o percebe e é maior do que ele, porque agora pode aceitar ou negar, gostar ou não. Essa parte é muito importante. Isso muda o nosso olhar. Não temos como rejeitar o fato de que somos únicos e que o sentimento é altamente subjetivo - quer dizer, quem determina é o sujeito na sua relação com o tempo e o espaço. Essa sensação pode não ser a mesma sempre. Um caldo, um cheiro, um prazer específico ou uma dor podem assumir dimensões ou intensidades absolutamente diversas no decorrer da nossa vida. Creio que o que determina é o momento vivido. Um filho pode ser recebido de forma distinta do outro. Comprar um objeto desejado pode ser para alguém o mesmo sentido de ter um filho - não em valor (claro!), mas em ter alcançado algo que gostaria muito. Pode ser que um filho seja ruim, uma notícia negativa para alguns a ponto de desejar matá-lo (como temos visto na mídia). Enfim, não dá para prever o que seja realmente novo enquanto sensação. Pode-se inclusive nos revelar algo a que convivíamos sem perceber, até estarmos propensos a esse despertar. E aí, tudo novo de novo....como diz o grande poeta Paulinho Moska.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Sobre os Filhos e as Pedras

Por Simone Silveira

Criar filho é semelhante ao ato de jogar a pedra na água no intuito de fazê-la derrapar, ou na melhor da hipótese, saltar graciosamente na superfície cristalina afim de que conquiste o infinito.

A pedra é escolhida ao acaso, pois elas estão lá soltas no mundo—rua, beira do rio, floresta. Mundo este que não existe até que nos damos conta dele. Agora, o mundo uma vez formado, nos presenteia com seus elementos minerais, diria mesmo ancestrais. É preciso que admiremos a grandeza da sua extensa existência. Assim, é possível tratá-lo com maior dignidade, já que, nos últimos tempos, temos coniventemente ignorado sua fragilidade e contribuído para a sua devastação.

Entre tantas pedras, há de se escolher uma com a forma plana e de preferência, arredondada. Há sempre a dúvida cruel se a eleita entre tantas é perfeita o suficiente para o jogo. Neste caso, e em quase todos na vida, uma escolha, é realmente a falta de escolha, pois já nos acostumamos a carregar no peito e na cabeça, idéias pré-definidas. Assim se passa quando se tem um filho. Bem no fundo, na hora do nascimento, a dor latente, a bacia dilatando, não importa ser a criança homem ou mulher. É imprescindível que seja saudável. Somos todos animais. Muitas mulheres como eu, dividem a mesma experiência de contar os dedos dos pés e das mãos do bebê nos primeiros segundos de vida dele. Essencial mesmo é que ele nasça. Ponto. Conheço quem pariu uma criança morta. Esta dor eu jamais desejo ao meu semelhante. Conheço uma mulher que pariu um filho doente. Ela é o meu melhor exemplo de mãe—paciência infinita, dedicação integral sem espera de retorno, amor incondicional.

Uma vez a pedra na mão, as outras deixam de existir, assim também se passa com os filhos. Quando miramos a sua fisionomia pela primeira vez, é como se já o conhecêssemos por toda a eternidade. Não há esforço. Esta familiaridade é instinto. Depois do reconhecimento, é hora de estudar a melhor forma de jogá-la na água para que salte em intervalos regulares. O intuito é que ela vá longe, muito longe. O corpo e as mãos se curvam em um ângulo específico, afim de que ao lançar a pedra, ela perfure o ar rodopiando em círculos magistrais, seguidos de um arco perfeito rumo à água. Sem quase tocar a superfície e vencendo a tendência natural de submergir-se, a pedra finalmente derrapa harmoniosamente sobre ela. Esta arte, aparentemente tão simples é como a arte de se criar um filho. Sua complexidade vem com a primeira febre, a primeira briga na escola, o primeiro palavrão, a primeira dor, o primeiro amor e outros primeiros que nos pegam despreparados e nos põem tão confusos como nossos filhos. Bem no fundo, somos todos marinheiros de primeira viagem, inclusive aqueles, como eu, que se julgam frutos de uma geração esclarecida —tudo pelo diálogo, e que defendem o conceito de ser a criança dotada de direitos e deveres como qualquer outro indivíduo. Na hora do aperto, há de se consultar os livros. To Listen to a Child, do Doutor Brazeton tem sido de suma importância como outros dele. A sogra também é elixir com toda a sua experiência de vida. As vizinhas, e até o porteiro tem o seu lugar nesta difícil arte.

Maternidade é certamente um ato natural, assim como muitos, por exemplo, comer de garfo e faca, porém é necessário a aprendizagem. Amamentar talvez tenha sido uma das mais doloridas, fisicamente e emocionalmente, nos meus primeiros meses como mãe. Tudo estava errado. Meu filho berrava. Era fome lhe corroendo o pequenino estômago. Eu me olhava no espelho, seios feridos, tanto sacrifício, qual era o problema? Eu era insistente no meu desejo, agüentava a dor da ferida aberta e os berros desesperados do meu primogênito. Três semanas e nada, a ferida crescia enquanto ele emagrecia. Ninguém me contou como segurar o bebê e dar-lhe o peito. Muita coisa a gente aprende na marra porque nossas mães “esqueceram.” Os vídeos nas aulas de preparação ao parto não é mão na massa. O boneco demonstrativo na aula de Lamaze está longe da realidade de uma criança de carne e osso e esfomiada nos braços. Enfim, sejamos modernas e sem preconceitos. Contratei uma consultora em amamentação e em poucas horas o problema foi resolvido. Me senti realizada como qualquer outro mamífero. Estava alimentando a cria.

Esta crônica era mesmo pra falar de toda a minha incerteza no meu papel de mãe (quem é mãe sabe, nunca sabemos se estamos fazendo a coisa certa... quem é filho também tem lá as suas dúvidas). Depois destas linhas e milhões de cenas rebobinadas na memória consigo derramar as minhas inseguranças e pouco reclamo dos meus filhos. Ela deveria ter começado assim: “Meus filhos até o dia de hoje competem com aqueles que me chamam pelo telefone.” O texto tomou rumo novo, voilà.

Inspiração nasceu de um telefonema pra mim do meu pai. A conversa durou pouco. Meus filhos, sempre educados em todas as outras circunstâncias, menos esta, cortou a minha conversa ao telefone com seus berros, chantagens e apelos. “As crianças no Brasil não são assim não, a gente fala no telefone sem problemas, elas se viram pra lá. Vocês também não foram assim não,” completou meu pai, certo que a nossa cultura brasileira permanece a mesma há várias décadas. Na hora respondi meio que justificando os gritos das crianças, “sabe como é, pai, aqui a gente cria filho muito só, eles se tornam muito dependentes da gente. Por isto não conseguem dividir a mãe,” disse eu, pensando mesmo nas empregadas brasileiras que tomam conta de tudo, que maravilha.

Pela noite me arrependi. Sou uma mãe que escolheu ter um papel ativo na educação de seus filhos. Tudo tem o seu preço. Há de chegar o dia quando poderei entrar no banheiro e curtir minha privacidade sem o receio de ser interrompida, ou telefonar a um amigo e ficar de papo pro ar. Tento lembrar do meu regresso ao trabalho e já posso sair pra jantar ou viajar uma vez ou outra sem que se sintam abandonados. São crianças felizes e seguras. Há um o tempo particular no amadurecimento de cada um. Há de ser ter paciência, eu repito para mim mesma, não posso esquecer. Assim como as pedras jogadas com precisão, a liberdade acontece a cada pulo.



Victor e Henry vendo a chuvar cair no pátio do Cloisters, NYC, 2007

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

O ato de roubar um beijo

De Bruno Vaks

Já começo esta crônica com um assunto que vai dividir, provavelmente, aqueles que se dispuseram a pensar, ler e relevar o ato em si. Afinal de contas, quase cem por cento das pessoas que poderia perguntar, levaria a palavra ao pé da letra e falaria que ela é da pior estirpe. Ou seja, todo o ato de roubar é ruim.

Não necessariamente. Estamos acostumados a ler todos os dias nos jornais e revistas, que fulano roubou sicrano, que “x” roubou um banco, que “y e z” roubaram pedestres na rua e por aí vai. Consequentemente essa palavra virou sinônimo de coisa ruim. Ora, como muitas vezes vou contra a maré, digo que roubo pode ser um ato bom.

O que? Vocês devem se perguntar. O cara enlouqueceu – dizem outros – nem vou continuar a ler....

No campo do amor há algo de se roubar que é muito bom. Os mais afoitos pensariam logo em roubar namorados. Que, grande parte das vezes é tomada à decisão pela incontrolável certeza que o outro ou a outra foi feito para você e não para aquele manezão/manezona com cara de otária(o) que anda, abraça e segura a mão da mulher/homem. Afirmo também, que por questões psíquicas e psicológicas, também não entendidas por mim, há aqueles que fazem isso somente pelo prazer de ter aquilo que o outro possui. Nem que seja por uma noite sequer. Ao passar dos anos essa questão vai se apaziguando e diminuindo, inversamente proporcional à abertura de ambientes e de mundos que o individuo descobre.

Roubar é um ato abominável e repulsivo. E roubar um beijo de alguém, o que é? Um ultraje, um insulto, uma sem-vergonhice como diria os mais velhos?

Vou dar a minha opinião sobre o assunto. Acredito que roubar um beijo é um ato de bravura, coragem e de risco, é claro. Não leve ao pé da letra achando que quem faz isso é igual ao beijoqueiro, que sai beijando todos e tudo nas ruas. Pense em você, nos momentos de tensão, do pré encontro com alguém, nos sonhos tanto sonhados dormindo e acordado sobre aquela pessoa que modificaria seu estado de espírito. Ah, a famosa ansiedade. A boca seca, o frio na barriga, o suor e, na pior das hipóteses, a gagueira ou a total falta de voz. Só pense.

OK. Quem nunca, enquanto conversava com alguém que saíra ou que estava flertando, se perdeu em pensamentos pensando em que momento ele a beijaria ou como ele iria beijá-la. Na sociedade judaico cristã ocidental que vivo, quase sempre é assim. Por isso um premio para aquelas que transgridem.

Numa roda de bebidas um dia desses, ouvi isso: “O ato de roubar um beijo” e confesso que achei sensacional.

- Quando ele ou ela menos espera - conscientemente, diga-se de passagem - você vai e smack! dizia o cara. Num primeiro instante o susto é que impera. A primeira reação será essa. Mas o que o susto libera, a sensação das bocas se tocando se sobrepõe e muitas vezes na seqüência há beijos e mais beijos. E aí meu caro, o resto é com você.

Também não posso deixar de falar, que há casos que o susto leva a uma sensação involuntária, como a repulsa imediata e se a pessoa se sentir ofendida com tamanho ato de invasão de privacidade, um tapa na cara será o que de pior acontecerá. Mas fique frio, em poucos dias o roxo se dissipa juntamente com o “não”simbólico que levou.

Já que a cabeça é um poço de idéias, ando pensando bastante em historias engraçadas de beijos roubados reais e imaginárias. Como o beijo roubado pode atenuar a ansiedade do casal ou, pelo menos de um deles. Lembrei de uma cena de um filme do Woody Allen, “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, em que o protagonista busca a pretendente em casa para irem no cinema. Já sabe-se que os dois estão interessados em se beijar, mas fica aquela sensação esquisita e doutrinada de rolar o beijo somente ao entregá-la em casa. Mas a caminho do cinema, o homem vira para mulher e diz, algo como:

- “Não agüento mais. Nos dois sabemos que iremos nos beijar na porta de sua casa, para que ficar sofrendo de angustia esperando o momento do beijo se podemos fazer isso agora e curtir uma noite agradável?” Isso acontece e vemos os dois rindo adoidado numa daquelas típicas cafeterias americanas.

Então a minha opinião é a seguinte: sentindo uma possibilidade, não deixe de aproveitá-la e a surpreenda. No geral, você ganhará pontos.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

A vez de Inocência

Simone Silveira

Estava distraída quando tropeçou pela primeira e única vez. Inocência havia passado toda a manhã em uma repartição pública para renovar o documento de identificação pessoal.

Chegou às oito horas em ponto quando o funcionário abriu as portas e redirecionou os cidadãos para o guinche de atendimento ao público. A fila andava vagarosamente. A espera era interminável. Uns deixaram de trazer um documento importante, outros esqueceram de pagar a taxa bancária indicada no formulário de renovação. Finalmente era a vez de Inocência. Depois da entrega da papelada, sujou os dedos de tinta e lá deixou sua impressão digital. Foi direcionada à frente da câmera para que a foto lhe fosse tirada. Sorriu. Rabiscou o seu nome à direita do “x” no rodapé do documento e partiu.

No elevador pressionou o abdômen com as duas mãos cerradas. O estômago doía. Comprou jabuticabas de um ambulante nordestino. Encheu a boca delas enquanto corria para atravessar a extensa avenida Rio Branco. Na euforia, suas pernas se embolaram e Inocência tropeçou. No asfalto da avenida Rio Branco as frutas rolavam. O sinal abriu. Inocência tentava se firmar sobre os pés, já nem pensava nas jabuticabas muito menos na dor do estômago. A dor agora era no pé direito. Aguda. As buzinas dirigidas à ela por motoristas impacientes não facilitava a difícil tarefa de se completar a travessia.

Inocência sentiu-se tonta. A respiração se tornou ofegante, apressada. As mãos pingavam suor, um filete dele lhe descia `as costas. Um imenso desejo de não mover-se instalou-se. Os automóveis se aproximavam, passavam por ela. Inocência lá, à deriva, pensamento petrificado. O sinal fechava. O sinal abria. Inocência foi aos poucos perdendo o medo. Primeiramente, o medo da forma automobilística em avanço, depois o medo do som de pneus derrapando, depois dos gritos—Louca! Saí daí, maluca! Quer morrer?

Ela morria. Eles não sabiam. Fio de sangue fazia o seu caminho até o corte, pele rompida pelo osso exposto. O líquido escorria e se misturava com a poeira do asfalto. Ela morria. As jabuticabas não existiam mais. A pele enrugava, a boca rachava, nem os olhos ela abria. Ela morria. Inocência tentara cruzar a grande avenida Rio Branco, verdade maior. Ela havia feito a decisão. Teve a coragem dos loucos, dos santos, dos desvalidos. Os passantes entretanto se acostumaram com a presença em decadência de Inocência — plantada no meio do asfalto, ferida e secando, dia após dia.

Ela poderia ter feito o enorme esforço de atravessar a avenida, agora longa, interminável, apoiando todo o peso de seu corpo sobre o pé saudável. Ela poderia ter gritado alto por uma mão caridosa. Porém houvera o desejo brotando-lhe no peito tão inesperadamente como a fruta que rolara pelo asfalto quente. Ela queria abraçar a própria inércia afim de por à prova a inércia alheia. O outro, de pé no meio-fio, dentro do carro, no alto dos prédios, debruçado na janela, permanecera insensível à sua dor. Ela só precisava de provas. Agora, já as tinha.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Ao Ponto

De Simone Silveira

Sempre me impressiono com os que desejam e mesmo assim escolhem a segurança de um amanhã falido. O sujeito sabe que não é feliz, a Felicidade está esmurrando a porta, quase rouca pedindo para entrar, e nada. O Homem até encontra a coragem, coitado, depois de dias, de pegar a chave e colocá-la no orifício da fechadura. A mão treme e ele desiste. A Felicidade sabe da desistência. Ela sabe de tudo. "E aí, meu caro, abre logo esta porta pois seu tempo extenua-se," diz Felicidade. A porta continua cerrada. O Homem esquece que o tempo ainda lhe pertence. Não todo o tempo do mundo, mas o pouco que possui é elixir na palma da mão em concha. "Olá, e aí, que bom ouvir sua voz," diz o Homem. E só. Sim, ela espera um pouco mais do outro lado. Desiste. Não pede mais. Elixir escorrendo por entre os dedos do Homem. Felicidade sabe da fraqueza alheia. "Eu vou bem, um pouco cansada. Ao esperar, me torno pingo caindo de um conta-gotas sem intervalo até nada mais restar senão o vazio preenchido pelo ar, " diz ela. Agora muda, parte mesmo, afinal ela é o que é. Vai não sem antes pendurar uma nota breve e honesta: Felicidade não bate duas vezes `a porta do Homem de alma perdida.